quarta-feira, 13 de março de 2024

“Alma minha gentil, que te partiste”, Camões

 

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,

Repousa lá no Céu eternamente

E viva em cá na terra sempre triste.

 

Se lá no assento etéreo, onde subiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro vistes.

 

E se vires que pode merecer-te

Alguma cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

 

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

 

   O soneto, que os biógrafos associam à morte de Dinamene (Tinanmen), amante chinesa com que Camões viveu em Macau, é um dos mais conhecidos. Segundo a tradição, acusado de delitos administrativos, Camões e Dinamene teriam sido levados da China para a Índia, onde seria julgado o poeta. Na viagem, por volta de 1560, o navio naufraga nas costas do rio Mekong. Camões teria conseguido salvar-se e salvar “Os Lusíadas”, que trazia quase concluído, mas teria perdido Dinamene, a sua “alma gentil”, relembrada em elevado tom elegíaco, quase místico.

   O Platonismo revela-se, no soneto, pela sublimação eternizadora da amada, a partir de sua morte. O poeta contempla a amada transubstanciada em puro espírito (“lá no assento etéreo”), por via do muito amar.

   O apelo aos sentidos é transcendentalizado, imaterializado, buscando Dinamene no Céu, em Deus, entendidos como valores filosóficos, míticos e não apenas religiosos ou cristãos.

   A morte implica uma espécie de purificação. A amada que partiu para esse “mundo das ideias e formas eternas”, também se torna objeto de elevação e saudade. Mas a “reminiscência”, neste caso, tem mão dupla: do poeta, que se eleva à beleza imaterial da amada, como usual, e também na direção oposta, pois o poeta sugere a possibilidade de que a amada se lembra dele, “lá do assento etéreo”.

   O poeta clássico equilibra a expressão de seus transes existenciais com a disciplina clássica. Emoção e razão, expressão pessoal e imitação modelam uma dicção sóbria, contida, mas nem por isso menos comovente. Mesmo quando aproveita o material autobiográfico, não há o desequilíbrio desesperado dos românticos.

   A morte da amada serve também ao exercício poético da imitação, no caso, do modelo petrarquista: “Questa anima gentil Che si diparte” e “Anima bella, da quel nodo sciolta.”

   A situação conflitiva que o poeta retrata projeta uma tensão que se aproxima do Maneirismo e, por essa via, do Barroco: a presença da morte, o tom fatalista, o dualismo que opõe vida e morte, passado e presente, serenidade e sofrimento.

 

sexta-feira, 1 de março de 2024

LÍNGUA PORTUGUESA, OLAVO BILAC

 

Última flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura:

Ouro nativo, que na ganga impura

A bruta mina entre os cascalhos vela…

 

Amo-te assim, desconhecida e obscura,

Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela

E o arrolo da saudade e da ternura!

 

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

 

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

 

- APOIADO NA TRADIÇÃO UFANISTA, BILAC ASSUMIU O PAPEL DE POETA CÍVICO, EXALTANDO A PÁTRIA, SUA LÍNGUA, SEUS SÍMBOLOS E HERÓIS ENGAJANDO-SE NAS CAUSAS CÍVICAS DE SEU TEMPO.

- O TÍTULO DO POEMAS JÁ INDICA A TEMÁTICA QUE SERÁ ABORDADA PELO AUTOR : O HISTÓRICO DA LÍNGUA PÁTRIA QUE REPRESENTA A MAIOR PROVA DE CIDADANIA.

 

- PRIMEIRA ESTROFE:

 

- A METÁFORA DA LÍNGUA COMO UMA FLOR,

« ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO, INCULTA E BELA».

- INCULTA: REFERE-SE AO FATO DE A LÍNGUA PORTUGUESA TER SIDO A ÚLTIMA LÍNGUA NEOLATINA FORMADA A PARTIR DO LATIM VULGAR, OU SEJA, O LATIM POPULAR, FALADA PELOS SOLDADOS DA REGIÃO ITALIANA DO LÁCIO, PORTANTO NÃO PARTIU DOS ERUDITOS OU ECLESIÁTICOS, O QUE ENFATIZA A NATURALIDADE DA LÍNGUA PORTUGUESA.

- BELA: REFORÇA O SENTIDO DA BELEZA ASSOCIADA AO ASPECTO SIMPLES E NATURAL DA LÍNGUA. 

- NO SEGUNDO VERSO, HÁ UM PARADOXO: “ÉS A UM TEMPO, ESPLENDOR E SEPULTURA».

- “ESPLENDOR”, PORQUE UMA NOVA LÍNGUA ESTAVA ASCENDENDO, DANDO CONTINUIDADE AO LATIM ; BRILHANTE, RELUZENTE E ORIGINADA DE UMA LÍNGUA MUNDIALMENTE CONHECIDA – O LATIM.

- “SEPULTURA” PORQUE, A PARTIR DO MOMENTO EM QUE A LÍNGUA PORTUGUESA VAI SENDO USADA E SE EXPANDIDO, O LATIM VAI CAINDO EM DESUSO, «MORRENDO».

- NO TERCEIRO E QUARTO VERSO: “OURO NATIVO, QUE NA GANGA IMPURA / A BRUTA MINA ENTRE OS CASCALHOS VELA» 

- GANGA: IMPUREZAS SEM VALOR ENCONTRADOS JUNTOS DOS MINÉRIOS; RESÍDUOS.

- O POETA EXALTA A LÍNGUA QUE AINDA NÃO FOI LAPIDADA PELA FALA, EM COMPARAÇÃO ÀS OUTRAS TAMBÉM FORMADAS A PARTIR DO LATIM.

 

- SEGUNDA ESTROFE:

 

- O POETA AINDA EXPRESSA O SEU AMOR PELO IDIOMA, AGORA ATRAVÉS DE UM VOCATIVO :

- “AMO-TE, Ó RUDE E DOLOROSO IDIOMA»: ESSA DECLARAÇÃO DE AMOR É ALTAMENTE VISÍVEL POR MEIO DA INSERÇÃO DA SEGUNDA PESSOA DO SINGULAR, EVIDENCIANDO O DESTINO DA FALA DIRETAMENTE À LÍNGUA PORTUGUESA. 

- BILAC ALUDE AO FATO DE QUE O IDIOMA AINDA PRECISAVA SER MOLDADO (« RUDE ») E, IMPOR ESSA LÍNGUA A OUTROS POVOS QUE NÃO ERA UMA TAREFA FÁCIL, POIS IMPLICOU E  DESTRUIR A CULTURA DE OUTROS POVOS.

- NO VERSO: «TUBA DE ALTO CLANGOR, LIRA SINGELA», O POETA SEGUE ENALTECENDO A BELEZA DA LÍNGUA EM SUAS DIVERSAS EXPRESSÕES, COMPARANDO-A COM CANÇÕES, SONS DE INSTRUMENTOS MUSICAIS DAS GRANDES ORATÓRIAS (ALTO CLANGOR, SOM ALTO ESTRIDENTE), CANÇÕES DE NINAR, EMOÇÕES.

- OU SEJA, APESAR DE ESTRIDENTE, FORTE, PODE TAMBÉM SER SERENA, SINGELA AOS NOSSOS OUVIDOS.

- EM «TENS O TROM E O SILVO DA PROCELA», O POETA EM TOM DE INTIMIDADE, POR MEIO DO PRONOME «TU» :

- TROM: SOM DE TROVÃO ; SONS FORTES DA LÍNGUA.

- SILVO: VENTO; SONS SIBILANTES, COMO UM ASSOVIO QUE CHEGA A LONGAS DISTÂNCIAS,

COMO O VENTO.

- PROCELA: FORTE TEMPESTADE NO MAR COM VENTO INTENSO E GRANDES ONDAS.

- QUER DIZER, É A LÍNGUA QUE DESABROCHA PELOS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES E GANHA O MUNDO.

- «E O ARROLO DA SAUDADE E DA TERNURA!»

- ARROLO: SOM DAS POMBAS – TRATA-SE DA DIVERSIDADE DE SONS SUAVES E FORTES, EVOCA CHEIRO.

 

- PRIMEIRO TERCETO:

 

- «AMO O TEU VIÇO AGRESTE E O TEU AROMA»

- VIÇO: VIGOR EM TODA PARTE, INCLUSIVE NO «AGRESTE».

- SINESTESIA: IDEIA DE AROMA E BELEZA RÚSTICA.

- «DE VIRGENS SELVAS E DE OCEANO LARGO!»

- APONTA A RELAÇÃO SUBJETIVA ENTRE O IDIOMA NOVO.

- “VIRGENS SELVAS»: FAZ ALUSÃO AO DESCONHECIDO DAS FLORESTAS AINDA NÃO EXPLORADAS PELO HOMEM BRANCO.

- “OCEANO LARGO»: MANIFESTA A MANEIRA PELA QUAL A LÍNGUA FOI TRAZIDA AO BRASIL, ATRAVÉS DO « OCEANO LARGO », NUMA LONGA VIAGEM DE CARAVELA.

- «AMO-TE, Ó RUDE E DOLOROSO IDIOMA»: ALUDE À DIFICULDADE DE SE ENTENDER AS REGRAS E AS EXCEÇÕES.

 

- SEGUNDO TERCETO:

 

- «EM QUE DA VOZ MATERNA OUVI: MEU FILHO

- FICA EVIDENTE O PAPEL MATERNO DA LÍNGUA PORTUGUESA, PORTANTO, PERSONIFICADO E DE LONGA VIDA.

- «E EM QUE CAMÕES CHOROU, NO EXÍLIO AMARGO,

O GÊNIO SEM VENTURA E O AMOR SEM BRILHO!»

- HÁ UM ELO ENTRE O EU POÉTICO E CAMÕES, QUEM CONSOLIDOU A LÍNGUA PORTUGUESA NO SEU CÉLEBRE LIVRO «OS LUSÍADAS», UMA EPOPEIA QUE ESCREVEU PROVAVELMENTE QUANDO ESTEVE EXILADO, NAS COLÔNIAS DA ÁFRICA E DA ÁSIA.

 

- Esse poema inspirou “Língua”, de Gilberto Mendonça, e a letra da canção “Língua Portuguesa”, de Caetano Veloso.

 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA, CECÍLIA MEIRELES

ROMANCE XIV OU DA CHICA DA SILVA




- ESTE ROMANCE, O EU POÉTICO ASSUME O FOCO EM TERCEIRA PESSOA PARA CONTAR PARTE DA HISTÓRIA DE CHICA DA SILVA, A “DONA DO TEJUCO”.

- NA EPÍGRAFE SENTIMOS O TOM TEMPORALMENTE DISTANTE (OS DOIS VERBOS ESTÃO NO PRETÉRITO PERFEITO) E HIPERBÓLICO, QUE DIZ:

(ISSO FOI LÁ PARA OS LADOS

DO TEJUCO, ONDE OS DIAMANTES

TRANSBORDAVAM DO CASCALHO.)

 - NESTE ROMANCE, CHICA DA SILVA APARECE PODEROSA, RICA E OCUPA O CENTRO DO ESPAÇO E DO TEMPO.

VESTIDA DE TISSO,

DE RASO E DE HOLANDA

- É A CHICA DA SILVA:

- É A CHICA-QUE-MANDA! (...)

 

MIL LUZEIROS CHISPAM

À FLEXÃO MAIS BRANDA

DA CHICA DA SILVA,

DA CHICA-QUE-MANDA!

E CURVAM-SE, HUMILDES,

FIDALGOS FARFANTES,

Á LUZ DESSA INCRÍVEL

FESTA DE DIAMANTES.

 

- A POETA FOI CUIDADOSA AO CRIAR ESTES VERSOS E DESCREVER COM MINÚCIA A FIGURA DE CHICA NO SEU IMPÉRIO DE LUXO, RESPLANDECENTE DE OURO E DIAMANTE.

- TRAJANDO ROUPAS DE TECIDOS FINOS E TODA IMPONENTE E TAMBÉM AUTÔNOMA E NÃO MAIS ANÔNIMA COMO ERAM AS MULHERES DA ÉPOCA E PRINCIPALMENTE, AS NEGRAS ESCRAVAS.

- AINDA, HÁ A DESCRIÇÃO DOS HOMENS QUE ADMIRAVAM A BELEZA DESTA MULHER.

- OS DIAMANTES REPRESENTAM A NOBREZA, OU SEJA, CHICA ERA UMA DAMA DA SOCIEDADE MINEIRA.

- EM UMA DAS VÁRIAS COMPARAÇÕES DADAS A ELA, ENCONTRAMOS A IMAGEM DO SOL, ASTRO QUE COMANDA. SUA FIGURA NOS LEVA, EM MUITOS VERSOS, À CEGUEIRA DEVIDO A TANTA LUZ QUE SUA PRESENÇA EMANA.

- UMA ALCUNHA UTILIZADA PELO EU LÍRICO PARA RETRATÁ-LA É, JUSTAMENTE, “CHICA-QUE-MANDA”, COMO SE O SEU NOME ESTIVESSE À AÇÃO DE COMANDO.

- PELO MODO COMO SE PORTA, PODEMOS VER QUE CHICA COPIA OS GESTOS DO COLONIZADOR, POIS DESEJA APROVEITAR SUA NOVA CONDIÇÃO SOCIAL.

- DE ESCRAVA À “DONA DO DONO DO SERRO DO FRIO”, CHICA AGORA É A DOMINADORA, E ENCONTRA-SE, EM QUESTÃO DE PODERIO, ACIMA DE TODOS.

(DIAMANTES ERAM, SEM JACA,

POR MAIS QUE MUITOS QUISESSEM

DIZER QUE ERAM PEDRAS FALSAS.)

 

- CHICA É COMPARADA À VÊNUS, À RAINHA DE SABÀ E À SANTA IFIGÊNIA:

(COISA IGUAL NUNCA SE VIU.

DOM JOÃO QUINTO, REI FAMOSO,

NÃO TEVE MULHER ASSIM!)

 

- TAL AFIRMAÇÃO CONSTITUI UMA AFRONTA AO FAMOSO REI DE PORTUGAL CUJA MULHER NÃO SE COMPARAVA À CHICA. O TEXTO EM REFERÊNCIA, IRÔNICA E SUTILMENTE, CONFIGURA UMA REALIDADE QUE PODERIA ABALAR O PODER.

- COMPRADA POR JOÃO FERNANDES, NO NATAL DE 1753, CONQUISTOU ALFORRIA POUCO DEPOIS.

- ENTRE 1755 E 1770, TEVE 13 FILHOS COM O JOÃO FERNANDES E CONQUISTOU STATUS PRIVILEGIADO.

- COMO ESTRATÉGIA DE NEGROS E NEGRAS ENRIQUECIDOS, ERA PRÁTICA COMUM PARTICIPAR DE IRMANDADES RELIGIOSAS.

- CABE SALIENTAR QUE A FILIAÇÃO ÀS IRMANDADES PROCURAVA AGREGAR INDIVÍDUOS DE MESMA ORIGEM E CONDIÇÃO ECONÔMICA E SOCIAL, CONSTITUINDO-SE, PORTANTO, NUM MODO DE OBTER DISTINÇÃO E RECONHECIMENTO SOCIAL.

- ENTÃO, ESTRATEGICAMENTE, CHICA ASSOCIA-SE A DIVERSAS IRMANDADES ATÉ ENTÃO, EXCLUSIVAS DE BRANCOS. PORTANTO, CIRCULAVA EM DIVERSOS ESPAÇOS, CONSOLIDANDO SEU PODER, SENDO ACEITA COMO PARTE DA ELITE LOCAL COMO TAMBÉM, MANTINHA LAÇOS SOCIAIS COM NEGROS.

- COM A PARTIDA DE JOÃO FERNANDES, EM 1770, PARA RECEBER OS BENS DEIXADOS EM TESTAMENTO PELO PAI, CHICA FICOU NO ARRAIAL DO TIJUCO COM OS FILHOS E PASSOU A ADMINISTRAR SOZINHA AS POSSES DEIXADAS PELO “CONTRATADOR”.

- COMPORTAVA-SE COMO QUALQUER SENHORA ABASTADA DO TEJUCO.

- O DESTINO DE SEUS FILHOS FOI PARADOXAL:

- HOUVE OCASIÕES EM QUE A FORTUNA QUE HERDARAM, ASSIM COMO A IMPORTÂNCIA DO PAI E DOS ASCENDENTES PATERNOS, FORAM DETERMINANTES. EM OUTRAS, A COR QUE HERDARAM DA MÃE E SUA CONDIÇÃO DE EX-ESCRAVA PESARAM NEGATIVAMENTE.

- O MAIOR ALIADO DE CHICA NÃO FOI SUA SENSUALIDADE NEM A FORÇA DO CARÁTER, MAS O DINHEIRO, PORQUE DINHEIRO NÃO TER COR.

- CHICA DA SILVA MORREU EM 1796 E FOI ENTERRADA NA IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS, LOCAL DESTINADO EXCLUSIVAMENTE A BRANCOS ENDINHEIRADOS, TALVEZ ESSE SEJA O PRINCIPAL SÍMBOLO DA INSERÇÃO DE CHICA NA ELITE DA SOCIEDADE EM QUE VIVEU.

- CHICA DA SILVA AO REPRODUZIR A CULTURA DO DOMINADOR, FAZ COM O INTUITO DE ATACÁ-LO PARA VENCER AS DIFERENÇAS IMPOSTAS PELO PRÓPRIO DOMINADOR – OS PRECONCEITOS QUE SERVIRAM DE BASE À EXPLORAÇÃO DOS NEGROS.

- É, PORTANTO COMO MULHER QUE CHICA DA SILVA DESEMPENHA SEU PAPEL NA TRAGÉDIA DA HISTÓRIA, PROCURANDO EM VÃO MODIFICAR-LHE O CURSO”.

 



sábado, 27 de janeiro de 2024

“Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, 2019, Ailton Krenak

 

   A obra “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, Ailton Krenak, escritor indígena, líder ativista ambiental e membro da Academia Brasileira de Letras, é composta por uma adaptação de duas palestras e uma entrevista proferidas em Portugal, nos anos 2017 e 2019.

   O livro é dividido em três partes: “Ideias para adiar o fim do mundo”, que dá nome à obra; “Do sonho e da terra”; e, por último, “A humanidade que pensamos ser”. Em entrevista a Massuela e Weis (2019), Krenak afirma que “estamos num fim de mundo. Pelo menos desse mundo que todo mundo acha que pode saquear”. E questiona: “quantas Terras vamos ter que consumir até essa gente entender que está no caminho errado?”.

   Ailton Krenak marcou presença nacional em 1987, quando protestou publicamente na Assembleia Nacional Constituinte, em Brasília, em defesa dos direitos dos povos originários, pintando seu rosto com tinta preta de jenipapo, como forma de manifesto político. Em 2000, Krenak recusou o convite para integrar-se às celebrações dos 500 anos da descoberta do Brasil, afirmando não se tratar de uma comemoração brasileira.

   A obra “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” inicia com um desabafo confessional sobre sua contrariedade de viajar a Portugal, por “razões afetivas e históricas”.

   Em 2017, entretanto, aceitou o convite de Eduardo Viveiros de Castro para participar de algumas atividades em um evento ibero-americano de cultura, em Lisboa, entre eles a exibição de um documentário “Ailton Krenak e o sonho da pedra”, dirigido Marco Altberg.

   O filme desencadeou reflexões a respeito da forma como a “humanidade” foi pensada e as consequências desastrosas que levaram esse processo, inclusive com uso de violência.

   O autor parte do princípio de que os colonizadores europeus, com o falso discurso de superioridade, detentores de uma “humanidade esclarecida” deveriam espalhar “luz” a quem julgavam por “humanidade obscurecida”, postura que impôs violentamente o silêncio da trajetória dos nossos povos originários, considerados incivilizados, com o objetivo de integrá-los ao “grupo da humanidade”.

   Krenak, em sua obra, alerta para os desafios dos dias atuais, perante as questões ambientais, da ameaça à sobrevivência da humanidade e de sua diversidade na Terra, e convida a refletir se “somos mesmo uma humanidade?”

Em seguida, enumera algumas instituições como o Banco Mundial, Organização dos Estados Americanos (OEA), e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que deveriam defender a “Natureza”, muitas vezes, erroneamente, induzem a acreditar que os avanços da modernização são sinônimos de “Humanidade” na tentativa de “justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza”. Esta afirmação é imprescindível para repensar os desdobramentos que ocorreram a partir do conceito criado sobre “humanidade”, que resultou em deslocamento físico e social, desterritorialização, maiores desigualdades sociais, perda da memória ancestral, a identidade e levando a autodestruição da vida humana.

   Esses questionamentos constituíram o alicerce temático da palestra provocativa de Krenak na UnB – Universidade de Brasília, de maneira irônica e dialógica, sobre desenvolvimento sustentável, intitulada “Ideias para adiar o fim do mundo”, que posteriormente, daria título a publicação da obra homônima.

   A palestra alerta que fomos alienados a traçar um paralelo entre os conceitos de Terra e Humanidade, tratando-as de formas distintas, como fonte de recursos para a satisfação das necessidades humanas. Entretanto, Krenak discorda desse dualismo, afirmando que uma está dentro da outra, “tudo é natureza” e exemplifica através da história de um pesquisador europeu do começo do século XX, que estava nos Estados Unidos e chegou a um território de Hopi, para entrevistar uma anciã e a encontrou conversando com uma rocha, que dizia ser sua irmã. Essa narrativa remete ao vínculo direto que os indígenas têm com a natureza e a ancestralidade, e como é impossível conceber uma humanidade sem a conexão e comunhão com a terra.

   Na sequência, o autor narra os acontecimentos trágicos que marcaram a aldeia Krenak, no Vale do Rio Doce: a degradação da extração mineral; o abandono da atividade agrícola e a restrição do seu território em virtude das invasões, destruindo a vida dos que viviam em sua extensão. Relata que cresceu sabendo que aquela serra chamava Takukrak, que tinha vida, personalidade e se expressava.  

   Cita várias regiões, onde a natureza é considerada um lugar sagrado, de onde os indígenas não só retiram a sustentação, a sobrevivência; mas, também orientação, inspiração, proteção, salvamento e amparo para resolver questões práticas da vida.

   Grandes incorporações e países do mundo moderno, entretanto, utilizam da visão de humanidade para explorar a terra, transformá-la em mercadoria com a disfarce de progresso, alienando seus habitantes, levando-os a viverem em ambientes artificiais, para que possam devorar as florestas, montanhas e rios.

O distanciamento do homem da terra, faz com que ele passe a vivenciar uma situação de abstração civilizatória, impedido de exercer a sua própria cidadania, transformando a humanidade em “humanidade zumbi”, sem prazer de viver, de dançar e de cantar.

   Os únicos que ainda sobrevivem a esta desumanização são os grupos dos índios, caiçaras, quilombolas, aborígenes classificados como sub-humanidade, que lutam e resistem pela preservação da terra, provocando conflitos com as corporações, que defendem, que “suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos [23]. Pensamento esse, que desfigura e anula todas as outras humanidades, ampliando espaços para uma sociedade consumista, que explora a natureza visando acúmulo de capital.

   O mundo moderno, dessa forma, além de destruir a natureza, extingue toda a nossa subjetividade, transformando-nos em objetos padronizados.

   Krenak faz referências à obra “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” (2015), do líder yanomami David Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert, pela luta pela sobrevivência, manutenção e permanência de sua cultura.

   De acordo com Krenak, sua conversa com aquelas pessoas é “contar mais uma história” para adiar o fim do mundo, para isso é necessário rever conceitos, padrões, práticas sociais e políticas e resgatar a nossa singularidade, ancestralidade, nossas raízes e reconhecer nossas diversidades. O autor propõe uma atitude de resistência para “quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar”, portanto, através de criatividade, criando “paraquedas coloridos”, pensamento crítico e luta para resistir à atrocidade da homogeneização que disfarçadamente denominam “humanidade”.

O palestrante afirma que no ano de 2018, o Brasil estava prestes a sofrer mais uma derrocada e foi questionado “como os índios vão fazer diante disso tudo?” Krenak responde que os povos indígenas, desde o período da colonização até os dias atuais resistem à sua destruição, violência e aos processos de ocupação, e para preservarem a tradição, costumes, seu espaço e suas subjetividades, sempre lutaram e continuaram resistindo.

   O autor conclui que uma das “ideias para adiar o fim do mundo” é “suspender o céu”, para enxergarmos mais longe, livremente, respeitando nossas subjetividades e não deixar nos corromper por ideias de consumo que só nos afastam da terra-mãe.

 

 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

CONVERSA DE BOIS, GUIMARÃES ROSA

 

ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA:

 

“CONVERSA DE BOIS”, GUIMARÃES ROSA

 

PROFESSORA: VALÉRIA PISAURO

 

I – TÍTULO: “CONVERSA DE BOIS” - OITAVO CONTO DE “SAGARANA”.

- AO ESCREVER AO AMIGO JOÃO CONDÉ, GUIMARÃES ROSA, REVELA QUE FOI UM “MEDIUNISMO PURO”: “EU PLANEJARA ESCREVER UM CONTO DE CARRO-DE-BOIS COM O CARRO, OS BOIS, O GUIA E O CARREIRO. (...) PENOSAMENTE, URDI O ENREDO, E, UM SÁBADO, FUI DORMIR, CONTENTE, DISPOSTO A POR EM CADERNO, NO DOMINGO, A HISTÓRIA. MAS, NO DOMINGO CAIU-ME DO CRÂNIO, PRONTINHA, ESPÉCIE DE MINERVA, OUTRA HISTÓRIA TOTALMENTE DIFERENTE DA VÉSPERA. NÃO HESITEI: ESCREVI-A, LOGO, E ME ESQUECI DA OUTRA, DA ANTERIOR.

- “CONVERSA DE BOIS” É UMA NARRATIVA QUE SEGUE UMA SEQUÊNCIA PREDOMINANTEMENTE PSICOLÓGICA, ENTRECORTADA POR DIVERSAS ESTÓRIAS PARALELAS. TRATA-SE, ALÉM DISSO, EM PROFUNDIDADE DE TEMAS EXISTENCIAIS E FILOSÓFICOS, FORMULADOS USUALMENTE NO UNIVERSO DA CULTURA ERUDITA, NUM CENÁRIO E COM LINGUAGEM ORAL SERTANEJA.

- EM 1945, SOFREU GRANDES RETOQUES, MAS NADA RECEBEU DA VERSÃO PRÉ-HISTÓRICA, QUE FORA DEFINITIVAMENTE SACRIFICADA (ROSA, 1984, p.9).

GUIMARÃES ROSA AFIRMA: “JÁ PRESSENTIRA QUE O LIVRO, NÃO PODENDO SER DE POEMAS, TERIA DE SER DE NOVELAS, E – SENDO MEU – UMA SÉRIE DE HISTÓRIAS ADULTAS DA CAROCHINHA. “(ROSA, 1984, p. 6-7)

- A CONVERSA É DE BOIS, MAS, OS OUVINTES SÃO OS HUMANOS. REVELA-SE AQUI UMA ESPÉCIE DE “FILOSOFIA DOS BOIS”: ANTROPOMORFIZAÇÃO (BOIS) VERSUS ZOOMORFIZAÇÃO (VIVENCIADO POR TIÂOZINHO).

OS BOIS SÃO OS PROTAGONISTAS DESSA HISTÓRIA E ASSEMELHAM-SE AOS HUMANOS, NÃO SÓ NA ESFERA COMPORTAMENTAL, MAS TAMBÉM NA ESFERA MORAL, REPRODUZINDO PENSAMENTOS, SENTIMENTOS E NOÇÕES DE VALORES QUE SÃO HUMANOS.

- ROSA NÃO TRANSMITE MERAMENTE A HUMANIDADE AOS ANIMAIS, MAS OS MUNE COM CERTA INTUIÇÃO, DANDO-LHES FORÇA E REPRESENTANDO-OS COMO FARIAM SE REALMENTE PENSASSEM E AGISSEM RACIONALMENTE. COMO SE O AUTOR SE TRANSPORTASSE PARA DENTRO DOS BICHOS, NÃO PARA TRANSMITIR A SUA PRÓPRIA PERSONALIDADE, MAS PARA INTERPRETAR E EXPRIMIR A IMAGINADA VIDA INTERIOR DELES, PARA MOSTRAR A FALTA DE PERCEPÇÃO DAS COISAS QUE O “BICHO HOMEM” TEM.

- A POSIÇÃO DE GUIMARÃES ROSA NESTE CONTO, REPOUSA NUMA PERSPECTIVA CRUZADA ENTRE O ANIMAL E O HOMEM, QUE TRADICIONALMENTE SE OPÕEM SOB OS RÓTULOS DE “NATUREZA” E “CULTURA”, OU SEJA, AS CONDIÇÕES EM QUE A VISÃO HUMANA VÊ O ANIMAL COMO PRESA E PREDADOR SOFREM UMA INVERSÃO.

EPÍGRAFE:

- É IMPORTANTE RESSALTAR A PRESENÇA DO ANIMAL-BOI NO IMAGINÁRIO MÍTICO-POPULAR. EM GERAL, NO COMPLEXO IMAGINÁRIO DAS NARRATIVAS ARCAICAS, ENCONTRAMOS UM CONJUNTO DE ANIMAIS MITICOS QUE FIGURAM NO PLANO DO COMBATE EXERCENDO TANTO A FUNÇÃO DE ANTAGONISTA (FEROCIDADE) QUANTO A FUNÇÃO DE DOADOR (AJUDANTE MÁGICO).

DE MUITAS DAS NARRATIVAS QUE CIRCULAM PELO SERTÃO, AS MAIS APRECIADAS ERAM AS QUE CONTAVAM A VIDA DE BOIS VALENTES E INSUBORDINADOS, APOIANDO-SE NA EXPERIÊNCIA AFETIVA COM ANIMAIS.

- NO BRASIL, VALE ASSINALAR, ENTRE OS FOLGUEDOS POPULARES MAIS TRADICIONAIS, DESTACA-SE O “BOI-BUMBÁ”, ONDE UM BOI-ARTEFATO QUE BAILA, MORRE E RESSUSCITA, ATUA COM GRANDE FORÇA NO IMAGINÁRIO POPULAR POR MEIO DAS REINTERPRETAÇÕES SIMBÓLICAS DOS BRINCANTES, ENCONTRADA EM VÁRIAS REGIÕES DO PAÍS.

- O BOI, PARA ALÉM DO RECONHECIMENTO DE SER SÍMBOLO DAS EXPRESSÕES DE UMA CULTURA NACIONAL (EMBORA SEJA DE ORIGEM IBÉRICA E EUROPEIA), É TAMBÉM UM ANIMAL QUE CARREGA SIMBOLOGIA MÍTICA.

- EM “CONVERSA DE BOIS”, A EPÍGRAFE QUE ABRE A NARRATIVA É EXTRAÍDA DO CORO DO “BOI-BUMBÁ” E UMA DAS CHAVES FUNDAMENTAIS PARA A COMPREENSÃO DA NARRATIVA:

– Lá vai! Lá vai! Lá vai!…/

- Queremos ver… Queremos ver…/

- Lá vai o boi Cala-a-Boca/

Fazendo a terra tremer!…” (Coro do Boi-Bumbá).

 

- PODE-SE DIZER QUE EM SEU EIXO SIMBÓLICO, O DESFECHO LÚDICO E TRIUNFAL DO CONTO, APROXIMA-SE DA CAMADA MÍTICA DA MORTE E RESSURREIÇÃO DA DANÇA DRAMÁTICA ENCENADA PELO FOLGUEDO DO BOI-BUMBÁ.

 

II - RECURSO FABULAR PARA CONTAR A SUA HISTÓRIA – O ANTROPOMORFISMO:

- O TERMO FÁBULA VEM DO LATIM:

- “FARI”, SIGNIFICA “FALAR” OU DO GREGO,

- “PHAO”, SIGNIFICANDO CONTAR ALGO.

 

- A NARRATIVA TEM UMA NATUREZA SIMBÓLICA E/OU ALEGÓRICA, RETRATANDO UMA SITUAÇÃO VIVIDA POR ANIMAIS, REMETENDO-SE À SITUAÇÃO HUMANA COM O OBJETIVO DE TRANSMITIR CERTA MORALIDADE.

- O MUNDO DO “FAZ DE CONTA” É CATEGORICAMENTE EXPLICITADO PELO ÍNDICE TEXTUAL QUE ABRE O CONTO EM GRAFIA MAIÚSCULA: “QUE JÁ HOUVE UM TEMPO”

 

- A FÁBULA OFERECE UM MODELO DE COMPORTAMENTO MANIQUEÍSTA, EM QUE O “BEM” DEVE SER REPRODUZIDO E O “MAL”, REJEITADO.

- ATUALIZAM OU REINTERPRETAM QUESTÕES UNIVERSAIS, COMO OS CONFLITOS DO PODER E A FORMAÇÃO DOS VALORES, MISTURANDO REALIDADE E FANTASIA.

- AO EXPLORAR A FÁBULA, O AUTOR RECUSA O ESTADO EFÊMERO DO FAZER LITERÁRIO, ENTENDENDO-O COMO CONSTANTE E CÍCLICO.

NÃO HÁ COMO ENCERRAR ALGO ESSENCIALMENTE INCLINADO A SE PERPETUAR.

 

- MODELO ESTRUTURAL DA FÁBULA:

 

1. TODA EFABULAÇÃO TEM, COMO MOTIVO NUCLEAR, UMA ASPIRAÇÃO OU UM DESÍGNIO, QUE LEVAM O HERÓI À AÇÃO;

2. A CONDIÇÃO PRIMEIRA PARA A REALIZAÇÃO DESSE DESÍGNIO É SAIR DE CASA (“DO CONFORTO”) E SE DESLOCAR A OUTRO AMBIENTE NÃO-FAMILIAR, COMO UM VERDADEIRO RITUAL INICIÁTICO, OBJETIVANDO SUA AUTORREALIZAÇÃO EXISTENCIAL PELO ENCONTRO DE SEU VERDADEIRO “EU”, QUE ENCARNA O IDEAL A SER ALCANÇADO, COM O OBJETIVO DE TRANSMITIR UMA CERTA MORALIDADE.

3. HÁ SEMPRE UM DESAFIO À REALIZAÇÃO PRETENDIDA OU OBSTÁCULOS APARENTEMENTE INSUPERÁVEIS QUE SE OPÕEM À AÇÃO DO HERÓI.

4. SURGE SEMPRE O MEDIADOR ENTRE O HERÓI E O OBJETIVO, ISTO É, SURGE UM AUXILIAR MÁGICO, NATURAL OU SOBRENATURAL, QUE AFASTA OU NEUTRALIZA OS PERIGOS E AJUDA O HERÓI A VENCER.

5. FINALMENTE, O HERÓI CONQUISTA O ALMEJADO OBJETIVO.

- O EXEMPLO MORAL TENDE A ESPELHAR A CONDUTA PADRÃO DE UMA IDEOLOGIA DOMINANTE, MUITAS VEZES, ESSA MORAL É FECHADA E INQUESTIONÁVEL.

 

- EM “CONVERSA DE BOIS” ENCONTRA-SE A IMAGEM DA INFÂNCIA DO HERÓI MENINO TIÃOZINHO ARTICULADA À MATRIZ POPULAR DOS CONTOS DE FADA, NO PONTO EM QUE É POSSÍVEL UMA SIMBIOSE ENTRE O MENINO E OS BOIS, COLOCANDO EM XEQUE O PLANO DA LÓGICA E DA COERÊNCIA.

 

III – FOCO NARRATIVO: COMPLEXIDADE POLIFÔNICA - NARRADORES OU TESTEMUNHAS DA “FÁBULA”.

 

O CONTO INICIA COM UM PREÂMBULO RELATIVAMENTE EXTENSO ONDE SÃO APRESENTADOS OS NARRADORES OU TESTEMUNHAS DA “FÁBULA”:

 

- MANUEL TIMBORNA É PERSONAGEM DO CONTO, MAS NÃO PARTICIPA DO UNIVERSO DIEGÉTICO DO MESMO. TRATA-SE DE UM NARRADOR EXTRADIEGÉTICO: NARRA, MAS NÃO INTEGRA ESPECIFICAMENTE A AÇÃO NARRATIVA.

- AS VOZES PARECEM INTERCALADAS EM QUE TIMBORNA E O NARRATÁRIO DIALOGAM.

 

“- EU ATÉ POSSO CONTAR UM CASO ACONTECIDO QUE SE DEU .... SÓ SE EU TIVER LICENÇA DE RECONTAR DIFERENTEM ENFEITADO E ACRESCENTADO POUCO A POUCO.

- FEITO! EU ACHO QUE ASSIM ATÉ FICA MAIS MERECIDO, QUE NÃO SEJA.” (ROSA, 1984, p. 302).

 

- TEMOS TAMBÉM, A PERSONAGEM IRARA RISOLETA (PEQUENO ANIMAL CARNÍVORO), TESTEMUNHA DO RELATO FENOMENAL, QUE PASSA SEUS SABERES (“A MINUCIOSA NARRAÇÃO”) EM TROCA DA SUA LIBERDADE PARA MANUEL TIMBORNA E, QUE IRÁ PASSÁ-LA ADIANTE.

- MANUEL TIMBORNA, DAS PORTEIRINHAS, UM POETA QUE, “EM VEZ DE CAÇAR SERVIÇO PARA FAZER, VIVE FALANDO INVENÇÕES SÓ LÁ DELE MESMO”.

ELE “DORMIA À SOMBRA DO JATOBÁ, E O BICHINHO VEIO BISBILHOTAR, DE DEMASIADO PERTO, ACERCA DO BENTINHO AZUL QUE ELE USA NO PESCOÇO,

- ELA SÓ PODE RECOBRAR A LIBERDADE A TROCO DA MINUCIOSA NARRAÇÃO (ROSA, 1984, p. 305). “

 

- O CARÁTER FEMININO DO “BICHINHO” PERMITIRIA SUPOR QUE ESTE FAZ ÀS VEZES DA “MUSA” QUE INSPIRA O POETA:

“POR AÍ SE VÊ QUE A IRARA ERA GENIAL, ÀS VEZES; MAS, NO FUNDO, NÃO PASSAVA DE UMA MULHERZINHA TEIMOSA, SEMPRE A SUPLICAR: ME DEIXEM ESPIAR UM POUQUINHO”.

 

 - CABE, ASSIM, A MANUEL TIMBORNA PERPETUAR A HISTÓRIA (PORTA-VOZ DA IRARA), USANDO UMA FORMA NARRATIVA MILENAR: OS RELATOS ORAIS, COMO OS ANTIGOS CONTADORES DE ESTÓRIAS (ORALIDADE - FÁBULA), QUANDO IRÁ PASSÁ-LA ADIANTE A UM NARRATÁRIO (PRESENÇA DO OUVINTE) QUE, SE COMPROMETE OUVÍ-LA, COM A CONDIÇÃO DE PODER ENFEITAR E ACRESCENTAR DETALHES – O QUE TIMBORNA ACEITA PRONTAMENTE.

- ATRAVÉS DA PROPOSIÇÃO DE RECUPERAR “O CONTAR HISTÓRIAS”, OU SEJA, O RECUPERAR DA NARRATIVA ORAL, O NARRADOR PROVOCA SEU OUVINTE A PARTICIPAR DE UM JOGO LINGUÍSTICO, COLOCANDO-O FRENTE A FRENTE COM IMAGINÁRIO DAS HISTÓRIAS.

- TRATA-SE DE UM COMPROMISSO QUE NÃO ATARÁ A FORÇA EXPRESSIVA DA NARRAÇÃO, PORÉM PROPICIARÁ A INVENÇÃO DE UM MUNDO, NÃO NECESSARIAMENTE COERENTE COM A REALIDADE FACTUAL, MAS COM UMA COERÊNCIA INTERNA QUE SE CONSTRÓI A VEROSSIMILHANÇA QUE APROXIMA O LEITOR DA ESTÓRIA NARRADA.

 

- DESSA MANEIRA, GUIMARÃES ROSA TECE SUAS HISTÓRIAS A PARTIR DO ESTABELECIMENTO DE UM PONTO DE CONFLUÊNCIA ENTRE O MUNDO DA ORALIDADE E O DA ESCRITA.

 

- O MOÇO QUE ESCUTA TIMBORNA É O UM VIAJANTE (GUIMARÃES ROSA ???), ENQUANTO QUE, A IRARA RISOLETA E O TIMBORNA REPRESENTAM O SERTÃO, “O CAMPONÊS SEDENTÁRIO”.

- A PARTIR DO DIÁLOGO ENTRE TIMBORNA E O “MOÇO”, A NARRAÇÃO FICCIONAL SE INSTAURA, POIS APESAR DOS ENFEITES QUE O NARRADOR POSSA REALIZAR, HÁ UM INDIVIDAMENTO COM A FONTE PRIMEIRA – A IRARA RISOLETA.

- O “REDATOR” DA ESTÓRIA É UM HOMEM CULTO, QUE CONHECE OS CLÁSSICOS, CITANDO VIRGÍLIO:

“VISA, SUB OBSCURUM NOCTIS PECUDESQUE LOCUTAE. INFANDUM!...”

- “E FORAM VISTAS, NO ESCURO DA NOITE, OVELHAS QUE FALAVAM. ABOMINÁVEL!” (Virgílio, Geórgicas.)

 

- ESSES DIZERES ILUSTRAM O TEOR REFLEXIVO DA HISTÓRIA, VALORIZANDO O CARÁTER ANTROPOMÓRFICO DOS BOIS, QUANDO ESTES ENXERGAM SOB AS TREVAS DA NOITE.

CONSIDERANDO-SE O CONTEXTO SIMBÓLICO QUE SUBORDINA À NARRATIVA DE “CONVERSA DE BOIS”, O TEOR DA SENTENÇA GANHA SIGNIFICADO ESPECIAL NA ASSOCIAÇÃO ENTRE O ELEMENTO NOTURNO E O UNIVERSO IMAGINÁRIO QUE DÁ VIDA AO TEXTO, ONDE A NOITE OBSCURA SURGE COMO ESPAÇO DE MATERIALIZAÇÃO DOS FENÔMENOS, CUJA MISTERIOSA NATUREZA ULTRAPASSA OS DOMÍNIOS DA RACIONALIDADE.

 

- SOB A CAPA ESPESSA DA TREVA REPOUSA TODA ESPÉCIE DE FORÇAS ESTRANHAS AO INTELECTO.

NA NOITE, O ESPÍRITO RACIONAL É ESFACELADO EM FAVOR DE UMA OUTRA SAPIÊNCIA, REGIDA PELAS FORÇAS DA VIDA INSTINTIVA. ASSIM, AQUILO QUE, QUANDO CONSIDERADO SOB A ÉGIDE DA LUZ DO DIA APARECE COMO IMPOSSÍVEL, IMPROVÁVEL, NA NOITE RESULTA COMO PERFEITAMENTE PLAUSÍVEL, POSSIBILITANDO ENFIM, QUE AOS BOIS SEJA CONCEDIDA A FACULDADE DO PENSAMENTO E DA FALA.

 

- O CONTO É BASEADO NESSA PREMISSA E TENDO COMO SUPORTE ESSA NOITE SIMBÓLICA NA QUAL A RAZÃO ENCONTRA-SE DESLEGITIMADA EM FAVOR DO FANTÁSTICO. É EXATAMENTE NA ESPECIFICIDADE DESSE PENSAR NOTURNO QUE RESIDE O CERNE DA SABEDORIA INSTINTIVA E ANTIRRACIONAL DOS BOIS.

 

- A ESTRATÉGIA MAIS CRIATIVA, EM TERMOS DE POLIFONIA, É A NARRAÇÃO DO BOI BRILHANTE, “NARRADOR DA EXPERIÊNCIA”, QUE TEM COMO BASE DE EXPERIÊNCIA, A META-HISTÓRIA ENVOLVENDO UM RELATO TESTEMUNHAL SOBRE A HISTÓRIA DO BOI RODAPIÃO:

- BOI BRILHANTE CONHECEU O BOI RODAPIÃO QUANDO DIVIDIRAM A MESMA CANGA.

- A CADÊNCIA PERMANECE DA NARRATIVA E O FATO DE O NARRADOR, DAR VOZ AO BOI, FAZ COM QUE A LINEARIDADE NÃO SE ROMPA, MAS TEM-SE UMA VARIAÇÃO, QUE LEMBRA A RODA DO CARRO: A VOZ DO SERTÃO E A VOZ UNIVERSAL DA FÁBULA SE TORNAM UNÍSSONAS.

- A NARRATIVA DE BRILHANTE TEM COMO OBJETIVO ILUSTRAR O TEOR HUMANO DO LENDÁRIO BOI RODAPIÃO.

- A HISTÓRIA AUXILIA OS BOIS A TECEREM MELHORES REFLEXÕES SOBRE O CARÁTER DO SER HUMANO, FATOR DECISIVO PARA QUE ELES POSSAM AJUDAR O PEQUENO TIÃOZINHO NO FINAL DO CONTO.

- ESSA SUCESSÃO DE NARRADORES CONDUZIRÁ A UMA RELAÇÃO, APARENTEMENTE CAUSAL ENTRE EVENTOS NARRADOS, O QUE SE CONFIGURA COMO UMA ESTRATÉGIA DE NARRAÇÃO. ESTES EVENTOS APRESENTADOS EM FORMA DE DIÁLOGOS, SEM A MEDIAÇÃO DO NARRADOR, O QUAL SE DESINTEGRA NO ENREDO, CAUSA UM EFEITO NA ESTRUTURA NARRATIVA DE PRESENTIFICAÇÃO DA REALIDADE.

 

IV – TEMPO E ESPAÇO: ILUSÃO DA EXISTÊNCIA DOS ESPAÇOS, TEMPO E PERSONAGENS NARRADOS.

 

NO INÍCIO, O NARRADOR DEIXA SUBENTENDIDO QUE NÃO SE TRATA DE UMA HISTÓRIA COMUM, EXPLICITADO PELO ÍNDICE QUE ABRE O CONTO EM GRAFIA MAIÚSCULA:

 

“QUE JÁ HOUVE UM TEMPO EM QUE ELES CONVERSARAM, ENTRE SI E COM OS HOMENS, É CERTO E INDISCUTÍVEL, POIS QUE BEM COMPROVADO NOS LIVROS DAS FADAS CAROCHAS.

MAS, HOJE-EM-DIA, AGORA, AGORINHA MESMO, AQUI, AÍ, ALI, E EM TODA PARTE, PODERÃO OS BICHOS FALAR E SEREM ENTENDIDOS, POR VOCÊ, POR MIM, POR TODO O MUNDO, POR QUALQUER UM FILHO DE DEUS?!” (ROSA, 2001, p. 325).

 

- O UNIVERSO DOS CONTOS MARAVILHOSOS FIGURA AVENTURAS FANTÁSTICAS MARCADAS POR HEROÍSMO E MISTÉRIOS E, AS COISAS SINGELAS DO SERTÃO, RECEBEM UM TRATAMENTO ÉPICO. DESSA FORMA, CADA VEZ QUE SÃO APRESENTADOS OS SOFRIMENTOS DE TIÃOZINHO CAUSADO POR SORONHO, NÃO SOMENTE OS BOIS SE APIEDAM DO MESMO, MAS O LEITOR, TAMBÉM, SE SOLIDARIZA AO MENINO.

- A SUCESSÃO DE ACONTECIMENTOS ALARGA O HORIZONTE TEMPORAL INICIAL, POIS, NÃO SABEMOS QUANTO TEMPO SE PASSOU DAS DEZ HORAS DA MANHÃ E IMPRIME UMA VELOCIDADE AO RELATO, POIS CADA CAPÍTULO É CONSTRUÍDO EM TORNO DE UMA DETERMINADA AÇÃO DE TIÃOZINHO.

- O NARRADOR APRESENTA UM ESPAÇO QUE RECEBE O REVESTIMENTO HISTÓRICO DE UM AMBIENTE SERTANEJO, O QUAL DESIGNA UMA ESTRUTURA DE DOMINAÇÃO SOCIOPOLÍTICA QUE EMERGE COM A PROJEÇÃO DO CARREIRO AGENOR SORONHO, ATRAVÉS DA QUAL SE REPRESENTA O MUNDO DA PECUÁRIA COMO GARANTIA DE SOBREVIVÊNCIA.

A ESTRATÉGIA DE DESCREVER O CARRO DE BOIS COM TODOS OS PORMENORES, VALORIZA A CULTURA LOCAL E INSERE O SERTÃO NO CONTEXTO FABULAR, DANDO AO ELEMENTO TIPICAMENTE MINEIRO, CARÁTER DE UNIVERSALIDADE.

- PROCURANDO DELIMITAR O ESPAÇO, DURANTE TODO O CONTO, PERCEBE-SE A PRESENÇA DE ELEMENTOS ALTAMENTE DESCRITIVOS QUE REFLETEM O PRIMOR DE GUIMARÃES POR DETALHAR AS MAIS RICAS PARTICULARIDADES DO SERTÃO, DE MODO QUE O CENÁRIO PODE SER QUASE ENXERGADO ATRAVÉS DA DESCRIÇÃO DO ESPAÇO.

“ENCRUZILHADA DA IBIÚVA, LOGO APÓS A CAVA DO MATA-QUATRO” (ROSA, 1980a, p.287).

 

V – LINGUAGEM: NÍVEIS DE INFORMALIDADE; VARIAÇÕES DE LINGUAGEM - CARÁTER POLIFÔNICO: DISTINTAS VOZES SOCIAIS.

 

NO CONTO, TEMOS A PRESENÇA DOS TRÊS DISCURSOS (DIRETO, INDIRETO E INDIRETO LIVRE) PARA COMPOR A NARRATIVA, CONFERINDO A ESTE CONTO, UM CARÁTER POLIFÔNICO, POIS DENTRO DO MACRODISCURSO DO NARRADOR SE MATERIALIZAM OS MICRODISCURSOS DOS BOIS, DE TIÃOZINHO, DE AGENOR SORONHO, DE JOÃO BALA, QUE ECOAM COMO DISTINTAS VOZES SOCIAIS QUE SE CONFRONTAM. PARA FIRMAR AS BASES DESSA CULTURA HETEROGÊNEA, AS PERSONAGENS E NARRADORES ROSEANOS INTERCALAM SEUS PAPÉIS, OU SEJA, DIANTE DE ACONTECIMENTOS OU RELATOS PECULIARES ORA NARRAM, ORA DIALOGAM, ORA SE INTERPRELAM.

HÁ UM PARALELISMO ENTRE A OBRA ROSEANA E A FILOSOFIA EXISTENCIAL: EMBORA ENCONTRAMOS OS TRÊS DISCURSOS CITADOS, HÁ PREDOMINÂNCIA DO DISCURSO INDIRETO LIVRE, POIS, O NARRADOR ESMIÚÇA OS PENSAMENTOS DAS PERSONAGENS ANIMAIS E HOMENS E SE APROPRIA DO DISCURSO DAS MESMAS PARA EXPÔ-LAS, DEMONSTRANDO SEUS MEDOS, RAIVAS E ANSEIOS, ENFIM DANDO A ELAS UMA DIMENSÃO HUMANA, ATRAVÉS DE UMA LINGUAGEM AO MESMO TEMPO MÍTICA E PROFUNDAMENTE POÉTICA.

- A MANUTENÇÃO DA FALA OU DO PENSAMENTO ORIGINAIS DA PERSONAGEM, AS EXCLAMAÇÕES, INTERROGAÇÕES E AS RETICÊNCIAS PRESENTES SÃO UMA FORMA DE PRESERVAR A ORALIDADE OU A ENUNCIAÇÃO MENTAL.

- USO DE NEOLOGISMO, HÍFEN, ONOMATOPEIA E ALITERAÇÃO.

 

1. SORONHO: REPRESENTAÇÃO MANIQUEÍSTICA DO MAL

“- TU TIÃO, DIABO! TU APERTOU DEMAIS O COCÃO! ... NÃO VÊ QUE A GENTE CARREANDO DEFUNTO-MORTO, COM ESSA CANTORIA, ATÉ DEUS CASTIGA, SIÔ?! ... NÃO VÊ QUE É TEU PAI, DEMONINHO?! ... FASTA! FASTA, CANINDÉ! ... OA! ... O-ÔA! ... ANDA, FICA NOVO, BOCÓ-SEM-SORTE, CARA DE PARI SEM PEIXE!... “(ROSA, 1984, p. 309-310).

O CAMPO SEMÂNTICO APRESENTA PALAVRÕES; OS VERBOS NÃO SEGUEM A CONJUNÇÃO QUE IMPÕE A NORMA PADRÃO; REDUÇÃO DE PALAVRAS E TRAÇOS DE UMA ORALIDADE SUPOSTAMENTE SERTANEJA.

 

2. BOIS: PERSONALIZADOS EM SEUS DISCURSOS PELA LINGUAGEM E CATEGORIAS:

 

- BOIS DE CARRO: AQUELES QUE FALAM, PENSAM E ESTÃO NA MESMA CONDIÇÃO DE TRABALHADORES.

- BOIS CRIADOS PARA ENGORDA: NÃO TÊM CONSCIÊNCIA DO QUE SÃO E ESTÃO DESTINADOS À ALIENAÇÃO EXTREMA. SÃO VISTOS COM DESCONFIANÇA PELOS BOIS E ALEGORIZAM UMA CRÍTICA À RACIONALIDADE, O QUE SE CONFIRMA COM A ESTÓRIA DO BOI RODAPIÃO.

 

3. TIÃOZINHO: PRATICAMENTE NÃO SE EXPRESSA DURANTE TODO O TRAJETO. SOMENTE APÓS A MORTE DE AGENOR SORONHO É QUE SE MANIFESTA ATRAVÉS DE UM PENSAMENTO CONFUSO DE UMA CRIANÇA, QUE APESAR DE LIVRE, CARREGA, A PRINCÍPIO, A CULPA PELO ACONTECIDO, CORANDO, COMO UM DOIDO.

- O SENTIMENTO DE TIÃOZINHO É MARCADO NA LINGUAGEM POR PONTOS DE INTERROGAÇÃO, QUE DENOTAM A INSEGURANÇA DIANTE DO FUTURO INCERTO; PONTOS DE EXCLAMAÇÃO QUE DENOTAM QUE SE APRESENTOU UMA ALTERNATIVA AO SOFRIMENTO VIVIDO; RETICÊNCIAS POR UM SENTIMENTO DE CULPA; USO SIMULTÂNEO DOS TRÊS SINAIS DE PONTUAÇÃO, QUE NÃO DEIXA O LEITOR INDIFERENTE AO OCORRIDO E O TORNAM MEIO CÚMPLICE, MEIO JUIZ DA AÇÃO OCORRIDA.

 

4. TIÃOZINHO E OS BOIS:

- A INEXPERIÊNCIA DO MENINO TIÃOZINHO É COMPENSADA COM A SAPIÊNCIA ADQUIRIDA DOS BOIS, O QUE LEVA DANÇADOR A PONDERAR:

“- O HOMEM É UM BICHO ESMOCHADO, QUE NÃO DEVIA HAVER. NEM CONVÉM ESPIAR MUITO PARA O HOMEM. É O ÚNICO VULTO QUE FAZ FICAR ZONZO, DE SE OLHAR MUITO. É COMPRIDO DEMAIS, PARA CIMA, E NÃO CABE TODO DE UMA VEZ, DENTRO DOS OLHOS DA GENTE.” (ROSA, 1984, p. 307).

 

- MESMO AO DESENVOLVEREM SUAS ATITUDES COTIDIANAS, O RACIONALISMO DOS BOIS ESTÁ PRESENTE, COMO NA CITAÇÃO ABAIXO, QUANDO BOI BRILHANTE REFLETE SOBRE O ATO DE PENSAR: “- MAS, PENSAR NO CAPINZAL, NA ÁGUA FRESCA, NO SONO À SOMBRA, É BOM .... É MELHOR DO QUE COMER SEM PENSAR. “

"NÃO ENCONTRO MAIS AQUILO QUE EU SABIA ... COISA VELHA ... TAMBÉM, TEM TANTA COISA PARA A GENTE PENSAR!... “(ROSA, 1984, p. 310).

 

5. OUTROS CARREIROS COM SEU LINGUAJAR PECULIAR:

- JOÃO BALA: “MAGINA, SE NÃO FOSSEM OS MEUS BOIZINHOS ABENÇOADOS! [...] A CANGA JOGANDO A JUNTA P’RA RIBA!” (ROSA, 1984, p. 330).

- SEU QUIRINO: “SOSSEGA, MEU FILHO! TEM GOLE D’ÁGUA, P’RA DAR A ESTE MENINO. SEM ÁGUA PARA A GOELA SECA. AJUDA AQUI, NHÔ ALCIDES!” (ROSA, 1984, p. 336)

 

VI - PERSONAGENS: A “BÁRBARA VIATURA” E A COMITIVA:

 

1. A “BÁRBARA VIATURA” ERA “ARRASTADA AOS SOLAVANCOS” POR OITO BOIS, EMPARELHADOS DOIS A DOIS:

- “BOIS DA GUIA”: BUSCAPÉ E NAMORADO;

-  CAPITÃO E BRABAGATO;

- DANSADOR E BRILHANTE;

- “OS SISUDOS SÓCIOS DA JUNTA DO COICE”: REALEJO E CANINDÉ.

 

 

- O EIXO HORIZONTAL REPRESENTA A DIVISÃO DA INVESTIGAÇÃO DO “EXISTIR” ENTRE AS PERSONAGENS.

- NO EIXO VERTICAL, CADA UM DOS SEMI-PLANOS CORRESPONDE A UMA DISPOSIÇÃO DE TIPO MORAL, ISTO É, UMA DIVISÃO ENTRE A INOCÊNCIA E A MALÍCIA. EVIDENTEMENTE, TAIS FRONTEIRAS NÃO SÃO NÍTIDAS, DADAS A IDENTIFICAÇÃO DE TIÃOZINHO COM A “NATUREZA BOVINA”, BEM COMO A DUVIDOSA MORALIDADE DE SEU ATO FINAL, QUANDO ATIÇA OS BOIS PARA QUE DERRUBEM SORONHO DO CARRO. AO SE CONSIDERAR TIÃOZINHO, O ELEMENTO ATIVO DA AÇÃO E AGENOR SORONHO COMO O OBSTÁCULO, PODEMOS ADMITIR QUE OS BOIS DO CARRO EXERCEM O PAPEL DE MEDIADORES, POIS NITIDAMENTE, SÃO MÁGICOS E FANTÁSTICOS NA HISTÓRIA.

 

2. ONOMATOLOGIA E ANTROPOMORFOLOGIA:

O EXOTISMO DE ALGUNS NOMES DAS PERSONAGENS DO CONTO “CONVERSA DE BOIS” LEVAM-NOS A RECORRER À ONOMATOLOGIA, QUE ESTUDA OS NOMES NÃO APENAS DE PESSOAS, MAS TAMBÉM DOS SERES PERSONIFICADOS.

- IRARA: SUBSTANTIVO FEMININO DE HÁBITOS NOTURNOS, DORME DURANTE O DIA E À NOITE SAI À PROCURA DE PÁSSAROS, OVOS E ATÉ PEQUENOS MAMÍFEROS, COSTUMA INCLUSIVE, ATACAR OS GALINHEIROS E SUGAR O SANGUE DAS GALINHAS.

- NO BRASIL É TAMBÉM CONHECIDA COMO PAPA-MEL, DESIGNAÇÃO USADA POR ROSA: “COM UM RABEIO FINAL, O PAPA-MEL EMPOOU-SE E ESPOOU-SE NAS COSTAS, E ANDOU À RODA, MUITO LIGEIRO, PORQUE É BEM ASSIM QUE FAZEM AS IRARAS.” (ROSA, 1984, p. 303).

EM SEGUIDA, A IRARA É BATIZADA: “E A IRARA VIRAVA A CARINHA PARA TODAS AS BANDAS, TÃO SÉRIA E MOÇA E GRACIOSA, QUE SE FOSSE MULHER SÓ SE CHAMARIA RISOLETA.” (ROSA, 1984, p. 305).

- OS ATRIBUTOS À IRARA CONTINUAM ANTROPOMORFIZANDO-A:

“ENTÃO, A IRARA RISOLETA FEZ O CÁLCULO DO TEMPO DE QUE DISPUNHA. OLHOU PARA CIMA, ESPIOU PARA O CAMINHO DA DIREITA, A VER SE TAMBÉM DALI NÃO SURGIA ALGUMA COISA DIGNA DE OBSERVAR-SE, E, DEPOIS, NUMA CORAGEM, CORREU EMPÓS A COMITIVA, VAI QUE AVANÇANDO ESPEVITADA, VEM QUE DESENXABIDA RECUANDO, SUMINDO-SE NA MOITAS, INDO ATÉ LÁ ADIANTE ...” (ROSA, 1984, p. 305).

- SÃO UTILIZADOS SINÔNIMOS PARA REFERIR-SE A IRARA, COMO: “CÃOZINHO SILVESTRE” (pág. 304), “CACHORRINHO-DO-MATO” (pág.303) QUE A ASSOCIAM A UM PARENTE PRÓXIMO DA RAPOSA, PERSONAGEM RECORRENTE NAS FÁBULAS, COMO SÍMBOLO DA ASTÚCIA E SAGACIDADE.

- O NARRADOR SE REFERE A IRARA COM APELO DIMINUTIVO, FORMA UTILIZADA NÃO PARA EXPRESSAR O TAMANHO DO ANIMAL, MAS PARA REITERAR UM CARINHO A ELA POR TER-LHE CONFIADO UMA NOVA ESTÓRIA. É PELA IRARA RISOLETA QUE CONHECEMOS A ESTÓRIA E ATRAVÉS DOS BOIS DA CANGA, QUE DÃO VOZ E VIDA AOS PERSONAGENS HUMANOS.

 

2. BOIS: UNIVERSO REPLETO DE ANIMAIS:

- SEM OS BOIS ANTROPOMÓRFICOS, A PERIPÉCIA DA NARRATIVA CONTINUARIA LATENTE, E ESTARÍAMOS LONGE DO FINAL CATÁRTICO E DIDÁTICO REVELADO NO FIM DO ENUNCIADO. TODOS OS BOIS SÃO DEVIDAMENTE NOMEADOS E CARACTERIZADOS, COM SUAS RESPECTIVAS FUNÇÕES E HÁ UMA GRADAÇÃO NESTAS FUNÇÕES:

 

1. “BOIS DA GUIA”: BUSCAPÉ E NAMORADO

- BUSCAPÉ: COM DUAS TONALIDADES DE AMARELO E EXUBERANTE BARBELA, É O MAIS NOVO QUE OS OUTROS. ARISCO E INQUIETO, SE ESTIVESSE SOLTO NO PASTO, PROVAVELMENTE SERIA UM PERIGO.

OCUPA A FRENTE DO CARRO, A “PONTA”, CHAMADO BOI-DE-GUIA, BOI CHINA, TIPO BOI CRIOULO.

BUSCAPÉ É O BOI QUE OBSERVA A COVARDIA DO CARREIRO AGENOR SORONHO, QUE JÁ LEVOU CORRIDA DE UMA VACA E DIZ: “- UM HOMEM NÃO É MAIS FORTE DO QUE UM BOI...”. (ROSA, 2001, p. 331).

-O NOME DO BOI LEMBRA A SUA CONDIÇÃO ARISCA, POIS O BUSCAPÉ É UM DOS FOGOS DE ARTIFÍCIO QUE CORREM ACELERADO E SEM DIREÇÃO.

- NAMORADO: “O-QUE-DEITA-PARA-SE-ESCONDER-NO-MEIO-DO-MELOSO-ALTO”, TAMBÉM É BOI-DE-GUIA.

DESCRITO COMO SENDO MARROM, MEIO AVERMELHADO, É O BOI QUE TIÃZINHO MAIS TEM PROBLEMAS PARA CONTROLAR. ELE CHEGA A ENCOSTAR OS CHIFRES NO CANDIEIRO (ESPÉCIE DE LAMPIÃO), POSSÍVEL ALUSÃO AO PRÓPRIO NAMORADO DA MÃE DE TIÃOZINHO.

 

2. BOIS DA JUNTA MESTRA – CONTRA-GUIA - CAPITÃO E BRABAGATO:

- CAPITÃO: BOI MAIS CALMO, CHAMADO DE “VACA NA MENOUPAUSA”, SALMILHADO, MAIS BRANCO QUE AMARELO.

- BRABAGATO: “MAL-CASTRADO”, TEM BRIO E É FOGOSO”. É MIRIM-MALHADO DE BRANCO E PRETO; MEIO CHITADO; MEIO CHUMBADO. SEU NOME É, PROVAVELMENTE, UMA CORRUPTELA DE BORBA GATO, UM DOS BANDEIRANTES DESBRAVADORES DO BRASIL.

 

3. TERCEIRA JUNTA - CENTRO DO CARRO, O EQUILÍBRIO, A HARMONIA DESEJADA ENTRE OCIDENTE E ORIENTE: DANSADOR E BRILHANTE

- DANSADOR (YIN-BRANCO- LADO MASCULINO) E BRILHANTE (YANG-PRETO- LADO FEMININO). 

DANSADOR: ÚNICO BOI ZEBU (NELORE) DO CARRO. TODO BRANCO, ZEBUÍNO (INDIANO) CAMBRAIA, SEU CORPO É IMPONENTE COMO O DE UM BÚFALO NORTE-AMERICANO. A SABEDORIA DE DANSADOR PODE SER PERCEBIDA NAS SUAS REFLEXÕES ACERCA DOS HOMENS:

“- ASSIM COMO OS CACHORROS, AS PEDRAS, AS ÁRVORES, SOMOS PESSOAS SOLTAS, COM BEIRADAS, COMEÇO E FIM. O HOMEM NÃO: O HOMEM PODE SE AJUNTAR COM AS COISAS, SE ENCOSTAR NELAS, CRESCER. MUDAR DE FORMA E DE JEITO .... O HOMEM TEM PARTES MÁGICAS...SÃO AS MÃOS... EU SEI. “

- DANSADOR LEMBRA QUE: “NÃO PODEMOS MAIS DEIXAR DE PENSAR COMO HOMEM.... ESTAMOS TODOS PENSANDO COMO HOMEM.”

- BRILHANTE: TODO PRETO, RETINTO, LISO, CONCOLOR, E SOFRE NOS DIAS DE MUITO CALOR COM A SUA PELAGEM, COMO UM HUMANO TEM “CERTEZA DE SUA EXISTÊNCIA” – O YANG, O LADO FEMININO, MISTERIOSO E ENIGMÁTICO ESSENCIAL PARA O EQUILÍBRIO. PROVAVELMENTE UM BOI MESTIÇO. NÃO HÁ COR MAIS BRILHANTE DO QUE A PRETA, POIS ABSORVE TODA A LUZ, DAÍ O NOME BRILHANTE.

TRATA-SE DE UM BOI CURTIDO PELA VIDA DURA, À VOLTA COM BERNES, BICHOS, CARRAPICHOS E SOFRE NOS DIAS DE MUITO CALOR COM A SUA PELAGEM. PERCEBE-SE O CARÁTER REALISTA DA SUA PERSONALIDADE: “COÇOU CALOR E AÍ TEVE CERTEZA DA SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA”, NUMA AUTO-CONSCIÊNCIA IMEDIATA DO PRÓPRIO SER.

SUA COURAÇA LEMBRA, TAMBÉM, SEU LUTO PELO IRMÃO TUBARÃO, QUE O ACOMPANHAVA NA JUNTA, E QUE MORREU HÁ UM MÊS E MEIO, ENVENENADO POR TIMBÓ, E SERVE DE CONTRA PONTO À CLARIDADE DE DANSADOR.

- BRILHANTE É UM TRABALHADOR, O QUE LHE CONFERE UMA CERTA AUTORIDADE MORAL SOBRE OS OUTROS BOIS. REPRESENTA A PRECEDÊNCIA DOS BOIS DE CARRO EM DETRIMENTO DOS DE PASTO:

“- NÓS SOMOS BOIS ... BOIS-DE-CARRO ... OS OUTROS, OS QUE VÊM EM MANADAS, PARA FICAREM UM TEMPO-DAS ÁGUAS PASTANDO NA INVERNADA, SEM TRABALHAR, SÓ VIVENDO E PASTANDO, [...] ESSES TODOS NÃO SÃO COMO NÓS” (ROSA, 1980a, p.292).

- BRILHANTE SENTE A NECESSIDADE ESSENCIALMENTE HUMANA DE CONTAR HISTÓRIAS E NARRA A HISTÓRIA DO BOI RODOPIÃO:

“PEQUENO ELE, POUCO CHIFRE, VERMELHO CAFÉ DE-VEZ...”

- NA MEDIDA EM QUE A NARRATIVA AVANÇA, O TÍPICO BOI DE CARRO DAS MINAS GERAIS NOS RELATA A FÓRMULA DA LÓGICA ARISTOTÉLICA:

TODO BOI É BICHO,

NÓS TODOS SOMOS BOIS,

ENTÃO, NÓS TODOS SOMOS BICHOS!...

(ROSA, 2001, p. 346).

- BRILHANTE SITUA-SE NO POLO FILOSÓFICO OPOSTO AO BOI RODAPIÃO, UM EXEMPLO DE INTELIGÊNCIA, NO ENTANTO, A SUA ASTÚCIA SERÁ A SUA RUÍNA.

“OLHAVA E OLHAVA, SEM SOSSEGO.”

- DURANTE UM TEMPO DE SECA, O BOI RODAPIÃO TENTA EXPLORAR UM MORRO ACIDENTADO. A PASSIVIDADE DE SEUS COLEGAS IRRITAVAM RODAPIÃO: “- VOCÊS NÃO FAZEM COMO EU, SÓ PORQUE SÃO BOIS BOBOS, QUE VIVEM NO ESCURO E NUNCA SABEM POR QUE É QUE ESTÃO FAZENDO COISA E COISA. “

- BRILHANTE ADMITIA QUE “NÓS NÃO RESPONDÍAMOS NADA, PORQUE NÃO SABEMOS FALAR DESSE JEITO...”

O PENSAMENTO DE RODAPIÃO O FAZIA HUMANO DEMAIS. ELE SE FAVORECIA COM ISSO, MAS TAMBÉM SOFRIA DAS INQUIETUDES INERENTES AOS HUMANOS, INQUIETUDES ESTAS QUE FORAM A CAUSA DE SUA RUÍNA.

ATRAVÉS DA HISTÓRIA DO BOI RODAPIÃO, OS BOIS PASSAM A NOTAR AINDA MAIS O SOFRIMENTO DO PEQUENO TIÃOZINHO, PRINCIPALMENTE DEPOIS QUE PASSAM PELO MORRO-DO-SABÃO, LOCAL DE DIFÍCIL ACESSO PARA CARRO-DE-BOIS.

 

4. NA ÚLTIMA JUNTA, CHAMADO “BOI DO COICE”:  REALEJO E CANINDÉ:

- REALEJO: TENDO O NOME DE UM INSTRUMENTO MUSICAL MOVIDO À MANIVELA, PERCEBE QUE É UM INSTRUMENTO DO HOMEM, E, POR ISSO, NÃO QUER SER IGUAL À RAÇA HUMANA. PARECE SER UM BOI CHILENO, LARANJO-BOTINEIRO, COM POLAINAS LÃ DE BRANCAS.

- É DELE O PENSAMENTO: “- PODEMOS PENSAR COMO HOMEM E COMO OS BOIS. MAS É MELHOR NÃO PENSAR COMO HOMEM...”

- ASSIM, REALEJO DEIXA CLARO QUE É RUIM VIVER PERTO DO HOMEM, POIS “TUDO PENSADO, É PIOR....”

- CANINDÉ: BOI JAGUANÊS OU AFRICANO; O NARRADOR RESSALDA A SUA BELEZA. SUAS CORES LEMBRAM A ARARA CANINDÉ, COLORIDA COM DUAS CORES:

“- UMA RISCA PRETA E UMA RISCA VERMELHA, MUITAS LONGAS, SALPICADAS DE BRANCO, NA DESCIDA DO FLANCO, E NA CORDA DO FLANCO.”

- CANINDÉ É QUEM RELATA QUE SÃO OS BOIS DE CARRO QUE PENSAM COMO HOMENS.

 

5. OUTROS BOIS CITADOS:

- BOI CARINHOSO, APRESENTADO NA NARRATIVA PELO BOI RODAPIÃO: “QUANDO O BOI CARINHOSO FICOU PARADO, NA BEIRA DO VALO DO PASTO, E NÃO QUIS COMER DE JEITO NENHUM, O HOMEM VEIO E LEVOU O BOI CARINHOSO NO CURRAL, E PÔS P’RA ELE MUITO SAL, NO COCHO....SE NÓS FICARMOS TAMBÉM SEM COMER, TODOS PARADOS NA BEIRADA DO VALO, O HOMEM NOS DARÁ MILHO E SAL, NO CURRAL, NO COCHO GRANDE...”

- OS BOIS HERÓIS CAMURÇA E MELINDRE, A QUEM JOÃO BALA DEVE A VIDA.

 

6.TIÃOZINHO: NOME ORIGINÁRIO DO SOLDADO DE CRISTO, SÃO SEBASTIÃO E SIGNIFICA: SAGRADO. TEM CARACTERÍSTICAS DE BOI:

1. DORME EM PÉ E VAI SE FORTALECENDO AO DEIXAR DE SER MENINO E SE TRANSFORMAR NO “BEZERRO-DE-HOMEM-QUE-CAMINHA-SEMPRE-NA-FRENTE-DOS-BOIS”, OU SEJA, QUE ESTÁ PRÓXIMO AOS BOIS, PORÉM AINDA NÃO SE IDENTIFICA COM ELES, POIS CAMINHA NA FRENTE.

2. PASSA SER O “BEZERRO-DE-HOMEM-QUE-CAMINHA-ADIANTE”, NÃO MAIS SEMPRE NA FRENTE DOS BOIS, OU SEJA, AQUELE QUE PODE, INCLUSIVE, CAMINHAR AO LADO DOS BOIS.

3. EM SEGUIDA, É DENOMINADO APENAS POR “BEZERRO-DE-HOMEM”, GANHA A SIMPATIA DOS ANIMAIS.

- ESTABELECIDA A CUMPLICIDADE ENTRE OS BOIS E O MENINO HÁ A TRANSFORMAÇÃO, OU SEJA, O QUADRO INICIAL DE TRISTEZA E DESAMPARO É TRANSFORMADO, DESEMBOCANDO NUM CLÍMAX. PODE-SE VISLUMBRAR UM POSSÍVEL PARALELISMO DO MENINO COM O HERÓI BÍBLICO GEDEÃO, NO TRECHO EM QUE “ENTÃO, ELE ABAIXA AS MÃOZINHAS JUNTAS, E BEBE” (ROSA, 1980a, p.307).

- DA MESMA MANEIRA QUE TREZENTOS JUSTOS DERROTARAM MADIÃ, CUJA “MÃO PESOU RUDEMENTE CONTRA ISRAEL”, O MENINO E SEUS OITO BOIS FORAM CAPAZES DE DERROTAR O DEMO REPRESENTADO PELO CARREIRO AGENOR, ASSIM COMO OS ISRAELITAS DERRUBARAM POR TERRA O ALTAR DE BAAL.

- NO ENTANTO, O PRÓPRIO TIÃOZINHO NÃO ESTAVA ISENTO NO SEU PRÓPRIO ESPÍRITO DA INFLUÊNCIA DEMONÍACA. ERA DOMINADO PELO ÓDIO AO CARREIRO, QUERIA MATÁ-LO:

“- TIÃOZINHO CRESCE DE ÓDIO.... SE PUDESSE MATAR O CARREIRO .... DEIXA EU CRESCER! .... DEIXA EU FICAR GRANDE! ... HEI DE DAR CONTA DESTE DANISCO ...” (ROSA, 1980a, p.308).

 

7. A MÃE DE TIÃOZINHO: RELAÇÃO DE ÓDIO E DESPREZO.

- ERA AMANTE DE AGENOR SORONHO QUE, POR SUA VEZ, SUSTENTAVA TODA A FAMÍLIA.

“- AH, DA MÃE NÃO GOSTAVA!...ERA NOVA E BONITA, MAS ANTES NÃO FOSSE ... MÃE DA GENTE DEVIA DE SER VELHA, REZANDO E SENDO SÉRIA, DE OUTRO JEITO... QUE NÃO TIVESSE MEXIDA COM OUTRO HOMEM NENHUM... COMO É QUE ELE IA PODER GOSTAR DIREITO DA MÃE? ... ELA DEIXAVA ATÉ QUE O AGENOR CARREIRO MANDASSE NELE, XINGASSE, TOMASSE CONTA, BATESSE ... MANDAVA QUE ELE OBEDECESSE AO SORONHO, PORQUE O HOMEM ERA QUEM ESTAVA SUSTENTANDO A FAMÍLIA TODA. MAS O CARREIRO NÃO GOSTAVA DE TIÃOZINHO ...”

- A PRÓPRIA MÃE “[...] FICARA NA PORTA, CHORANDO SEMPRE, EXCLAMANDO BOBAGENS, ESCORADA NAS OUTRAS MULHERES TODAS, AJUDANDO A CHORAR [...] E O RESTO DO POVO TINHA VIRADO AS COSTAS, POR QUE FAZ MAL A GENTE FICAR ESPIANDO UM ENTERRO ATÉ ELE SUMIR” (ROSA, 1980a, p.304).

 

8. JANUÁRIO, O PAI DE TIÃOZINHO: RELAÇÃO DE PENA E VERGONHA.

- ERA “CEGO ENTREVADO, JÁ DE ANOS, NO JIRAU”.

- JANUÁRIO: QUE NASCEU EM JANEIRO, CUJA ORIGEM TEM A VER COM JANUS, TEMENTE AOS DEUSES, AQUELE QUE TEM DUAS FACES: UMA VOLTADA PARA O PASSADO E OUTRA PARA O PRESENTE.

- ASSIM É O PAI DE TIÃOZINHO, QUE TEVE UM PASSADO HONRADO, ESTÁ PRESO A UM PRESENTE INDIGNO, SE APOIA NA FÉ PARA SUPORTAR ESTA SITUAÇÃO:

“TIÃOZINHO TINHA DE LEVAR A CUIA COM FEIJÃO, PARA COMER JUNTO COM ELE, PORQUE NEM QUE A MÃE NÃO TINHA PACIÊNCIA DE POR COMIDA NA BOCA DO PARALÍTICO... E ELA, COM SEU SORONHO, TINHAM, PARA COMER, OUTRAS COISAS, MELHORES... DEVIAM DE TER ... MAS, COM ISSO, TIÃOZINHO NÃO SE IMPORTAVA... O QUE DOÍA ERA O CHORO ENGASGADO DO PAI, QUE NÃO FALAVA QUASE NUNCA.” (ROSA, 1984, p. 316).

- “NA VÉSPERA DE MORRER, DE-NOITE, ELE AINDA PEDIRA PARA TIÃOZINHO TIRAR REZA JUNTO ... E TIÃOZINHO PUXARA O TERÇO, COCHILANDO...” (ROSA, 1984, p. 319).

 

9. AGENOR SORONHO: REPRESENTAÇÃO DO DEMÔNIO – “HOMEM-DO-PAU-COMPRIDOCOM-O-MARIMBONDO-NA-PONTA”

 

10. NHÔ ALCIDES (HÉRCULES) E SEU QUIRINO (JANO QUIRINO): RETIRAM O CORPO INERTE DE AGENOR DE DEBAIXO DO CARRO DE BOI.

- ALCIDES: PRIMEIRO NOME PELO QUAL É CONHECIDO O SEMI-DEUS HÉRCULES, QUE DESTINOU SUA VIDA À HONRA DOS DEUSES.

- QUIRINO: NA ROMA DE AUGUSTO, QUIRINO, TAMBÉM FOI UM EPÍTETO DE JANO, COMO JANO QUIRINO, OU SEJA, SE TRANSPUSERMOS PARA “CONVERSA DE BOIS”, QUEM SOCORRE TIÃOZINHO NA DIFÍCIL SITUAÇÃO EM QUE SE ENCONTRA, TEM NOME SINÔNIMO A DE SEU PAI, O QUE NOS REMETE, MAIS UMA VEZ AO VÍNCULO COM OS DEUSES, POIS JANUS ERA UM TEMENTE E AJUDANTE DOS DEUSES.

 

11. DIDICO: É O DIMINUTIVO DE DIDI, CUJA ORIGEM, SEGUNDO O FALAR POPULAR, ESTÁ EM BENEDITO.

- SÃO BENEDITO: HUMILDE TRABALHADOR AGRÍCULA, CUJO SIGNIFICADO É O ABENÇOADO, O LOUVADO.

- MENINO MALTRATADO, TINHA DEZ ANOS; MENOR DO QUE TIÃOZINHO, GORDINHO E CORADO, PARECIA UM ANJO DE ESTAMPA, DE OLHINHOS GAITEIROS E AZUIS, E TRABALHAVA MUITO, TAMBÉM.

“FOI NUM DIA ASSIM QUENTE, DE TANTA POEIRA ASSIM ... ELE TEVE DE IR CARREAR SOZINHO, PORQUE ERA O CARRO PEQUENO, SÓ COM DUAS JUNTAS E CARGA POUCA, DE BALAIOS DE ALGODÃO. NA HORA DE SAIR, SE QUEIXOU:

“ESTOU COM UMA COISA ME SUFOCANDO ... NÃO POSSO TOMAR FÔLEGO DIREITO, NEM ENGOLIR ... E TENHO UMA DOR AQUI …

NINGUÉM SE IMPORTOU; FALARAM ATÉ DE SER MANHA, PORQUE O DIDICO ERA GORDINHO E CORADO, PARECENDO UM ANJO DE ESTAMPA, DE OLHINHOS GAITEIROS E AZUIS. [...] NUNCA MAIS APARECIA COM O CARRO. E FORAM ENCONTRÁ-LO, NA COVANCA (VALE) DA ABÓBORA-D’ÁGUA, JÁ FRIO” (ROSA, 1984, p. 318-319).

- ANTECIPANDO O FUTURO DE TIÃOZINHO, O NARRADOR RELATA A SOLIDARIEDADE DE ALGUNS BOIS COM DIDICO: “OS BOIS HAVIAM PARADO, PARA NÃO PISAR EM CIMA, E ESTAVAM MUITO QUIETOS, POIS ÀS VEZES ELES GOSTAM DE FICAR ASSIM “(ROSA, 1984, p.319).

- MAS “OS BOIS DA GUIA, TINHAM MASCADO E COMIDO QUASE TODA A ROUPINHA DO POBRE DO DIDICO ... “(ROSA, 1984, p.319)

 

 

VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

I - A EFABULAÇÃO: MITO, ALEGORIA.

- TEMA:

- ELIMINAR O SILÊNCIO E A EXCLUSÃO IMPOSTOS DAS VOZES OPRIMIDAS; DENUNCIAR AS INJUSTIÇAS IMPETRADAS AO MUNDO DE TIÃOZINHO E AO MUNDO ANIMAL; FILOSOFIA EXISTENCIAL, PORTANTO, UNIVERSAL.

 

- PARTES DO RITO INICIÁTICO: CONFLITO-LUTA-SUPERAÇÃO.

- TRAVESSIA: O ATO DE SAIR DE CASA É A CONDIÇÃO INDISPENSÁVEL A REALIZAÇÃO DA ASPIRAÇÃO TRAÇADA PELO HERÓI, QUE SE DESLOCA PARA UM AMBIENTE NÃO FAMILIAR EM BUSCA DE SUA AUTO-REALIZAÇÃO.

 

a) O “OBSTÁCULO”: ANTES QUE A REDENÇÃO OCORRA HÁ O “DESAFIO” À REALIZAÇÃO.

- UM REI OU SEU EQUIVALENTE MODERNO, CARREIRO COMETE UM DANO PROVOCANDO UMA SITUAÇÃO DE DESEQUILÍBRIO.

- A RIGIDEZ E A INTRANSIGÊNCIA DE AGENOR SORONHO É UM DANO À VIDA DE TIÃOZINHO E À VIDA DOS BOIS.

b) OS MEDIADORES FANTÁSTICOS - OS BOIS:

- SEM OS BOIS ANTROPOMÓRFICOS NÃO TERIA UM FINAL CATÁRTICO E DIDÁTICO REVELADO NO FINAL. DAÍ, TAMBÉM, SE EXTRAI O VALOR MORALISTA.

c)  OS ELEMENTOS RESTAURAM A SITUAÇÃO DE EQUILÍBRIO:

- AO LIBERTAR O MENINO DO DOMÍNIO PERVERSO DO CARREIRO AGENOR SORONHO, TIÃOZINHO SEGUE EM PAZ.

- A VIDA CONSISTE NUM MOVIMENTO DE RECUO E AVANÇO, EXPRESSO NA ALTERNÂNCIA DO DIA E DA NOITE, DA DISPUTA DO ADULTO VERSUS CRIANÇA, PROCESSO NECESSÁRIO AO HERÓI QUE AO PASSAR POR UMA MUDANÇA DE TEMPO E ESPAÇO, REORGANIZA ESTA EXPERIÊNCIA QUE O TRANSFORMA.

 

II - EXISTÊNCIA, MUNDO DO TRABALHO E REALIDADES DISTINTAS ENTRE OS BOIS:

- CARRO DE BOIS: METÁFORA DA PRESENÇA OPRESSORA DOS VALORES HUMANOS.

- CANGA: PEÇA DE MADEIRA QUE PRENDE OS BOIS PELO PESCOÇO E OS LIGA AO CARRO. 

 

1. BOIS-DE-CARRO: FORÇA DE TRABALHO, POR VIVEREM PRÓXIMOS AO HOMEM, ASSUMEM E PARTICIPAM DA NATUREZA HUMANA, DE MANEIRA ESPECIAL DA SUA RACIONALIDADE:

AS COISAS RUINS SÃO DO HOMEM: TRISTEZA, FOME, CALOR – TUDO, PENSADO, É PIOR .... [...] PERTO DO HOMEM, SÓ TEM CONFUSÃO...” (Rosa 1984: 311).

- ALÉM DISSO, OS BOIS ADMITEM E LAMENTAM A PERDA DO SENTIDO CLÁSSICO DO DISCURSO, ATROPELADO PELA MODERNIDADE:

NÃO ENCONTRO MAIS AQUILO QUE SABIA ... COISA VELHA ...TAMBÉM, TEM TANTA COISA PARA A GENTE PENSAR!

 

2. BOIS-DE-PASTO (LIVRES)

- NÃO SABEM QUE SÃO BOIS PORQUE VIVEM APARTADOS DOS PARÂMETROS RACIONAIS DO HOMEM - SÃO ALIENADOS.

“OS BOIS SOLTOS NÃO PENSAM COMO O HOMEM. SÓ NÓS, BOIS-DE-CARRO, SABEMOS PENSAR COMO O HOMEM!”

 

III - AGENOR SORONHO E TIÃOZINHO: HIERARQUIA DE PAPÉIS SOCIAIS:

 

1. AGENOR SORONHO: REPRESENTAÇÃO DO DEMO.

- NA ORIGEM GREGA SIGNIFICA SOBERBO; VIRIL; O ANTI-HERÓI: SEU PAPEL CONSISTE EM DESTRUIR A PAZ.

HOMENZÃO RUIVO, DE MÃOS SARDENTAS, MUITO MAL-ENCARADO”; “[...] AGENOR SORONHO ESTÁ MESMO COM O DEMO”; “[...] ELE (Tiãozinho) TINHA OJERIZA DAQUELE CAPETA!”

SUA FIGURA, COM O “FERRÃO TEMPERADO DA VARA DE CARREAR”, ASSUSTA O PRÓPRIO PAPA-MEL RISOLETA, “QUE ESTREMECEU” À SUA PASSAGEM.

- REPRESENTANTE DA CLASSE DOMINANTE, CUJO DOMÍNIO EXERCIDO SOBRE TIÃOZINHO E SUA MÃE REFLETE UMA CULTURA DE TIPO PATRIARCAL, MARCADA PELA SUBMISSÃO AO PODER DOS MAIS FORTES. AGENOR ERA UM HOMEM HÁBIL, EXIBICIONISTA, “O MELHOR CARREIRO DO MUNDO”, ERA DESTRO E CHEGA A FAZER MALABARISMOS SOBRE O CARRO.

“[...] SALTA NO CHÃO, QUE NEM UM ARTISTA DE CIRCO-DE-CAVALINHOS, MAS ZANGANDO COM TIÃOZINHO E CAÇOANDO DOS BOIS”.

- EM SUA PSEUDO-VIRTUDE, AGENOR SORONHO CONTEMPLA COM DESPREZO A DESGRAÇA DE JOÃO BALA, AINDA QUE DISSIMULE INTERESSE AUTÊNTICO E HUMANA COMISERAÇÃO.

O CARREIRO TINHA VINDO CONSOLAR A SUA TRISTEZA, DIZENDO QUE DAÍ EM DIANTE IA TOMAR CONTA DELE DE VERDADE, IA SER QUE NEM SEU PAI [...]” (ROSA, 1980a, p.304).

 

2. TIÃOZINHO: SENTIMENTO DE DEPENDÊNCIA, OPRESSÃO E SONHO DE LIBERDADE - DIMINUTIVO DE SEBASTIÃO.

- SÃO SEBASTIÃO NO SEU TEMPO DEIXOU AOS CRISTÃOS A LIÇÃO DE QUE O COMBATE AO OPRESSOR É POSSÍVEL (LUTOU CONTRA O IMPERADOR DIOCLECIANO).

- REIVINDICA, AO LADO DOS BOIS, O DESEJO DE CONSTRUIR PARA SI E PARA OS BOIS, UMA NOVA REALIDADE E CORRIGIR A INJUSTIÇA DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NO MUNDO RURAL.

- LIBERTA-SE DO PESO DA DOR E DAS INJÚRIAS SOFRIDAS. EM CERTA PROPORÇÃO É CAPAZ DE ABOLIR O PASSADO, DE RECOMEÇAR SUA VIDA E DE RECRIAR SEU MUNDO.

 

IV. O HOMEM VERTICAL (DOMINANTE): A POSTURA ERETA DO HOMEM – BÍPEDE - PONTO DE ASCENSÃO

É O ÚNICO VULTO, QUE FAZ FICAR ZONZO, DE SE OLHAR MUITO.”

- A POSTURA BÍPEDE PERMITE QUE OS HORIZONTES DA HUMANIDADE SE EXPANDAM E AFASTAM-O DO MUNDO NATURAL. OS OLHOS DOS HOMENS ANTES VOLTADOS PARA O ESPAÇO RESTRITO DA TERRA DESLOCAM-SE PARA ÁREAS AMPLAS E ABERTAS.

A LOCOMOÇÃO BÍPEDE LIBERA AS MÃOS PERMITINDO QUE ELAS POSSAM MANUSEAR OS ELEMENTOS DISPONIBILIZADOS PELA NATUREZA, TRANSFORMANDO-A EM OUTROS BENS, INVENÇÕES, CONQUISTAS E, INCLUSIVE, A LIBERDADE DE MANEJAR ARMAS.

- OS BOIS, AS PEDRAS E AS ÁRVORES INSEREM-SE

NO ESPAÇO DOS CICLOS NATURAIS COM COMEÇO E FIM (REINO ANIMAL, MINERAL E VEGETAL) E NÃO SE INQUIETAM NEM SE ERGUEM CONTRA A NATUREZA.

- JÁ O HOMEM PERCEBE-SE COMO SUJEITO, DOTADO DA CAPACIDADE DE INTERFERIR NOS RUMOS DA NATUREZA, ATRAVÉS DO PENSAMENTO LÓGICO-RACIONAL E INVERTE ESSA RELAÇÃO: A NATUREZA DEVE SERVI-LO.

- DANÇADOR DIZ, COM BABA:

“- EU ACHO QUE NÓS, BOIS –– ASSIM COMO OS CACHORROS, AS PEDRAS, AS ÁRVORES, SOMOS PESSOAS SOLTAS, COM BEIRADAS, COMEÇO E FIM.

- O HOMEM, NÃO: O HOMEM PODE SE AJUNTAR COM AS COISAS, […] O HOMEM TEM PARTES MÁGICAS ... SÃO AS MÃOS ... EU SEI... “(Rosa 1984: 326).

 

V - “MATA-QUATRO”:

- “ENCRUZILHADA DA IBIÚVA, LOGO APÓS A CAVA DO MATA-QUATRO” (ROSA, 1980a, p.287).

- ENCRUZILHADA: TOMADA DE DECISÕES, SEGUNDO A UMBANDA, É UM LUGAR ONDE SÃO FEITAS OFERENDAS A EXU.

- IBIÚVA SIGNIFICA “MATO RUIM”;

- CAVA (MORTE);

- DO MATA-QUATRO (TUBARÃO, RODAPIÃO, DIDICO E JANUÁRIO), FINALIZANDO COM A MORTE DO DEMO – AGENOR SORONHO.

 

VI - A IRARA: COMEÇO E FIM – CIRCULAR - A ESTÓRIA TERMINA COM O ANIMAL QUE A COMEÇOU.

 

- A IRARA “SE LEMBROU DE QUE TEM UM SÉRIO ENCONTRO MARCADO, DUAS HORAS E DUAS LÉGUAS PARA TRÁS, É QUE O CAMINHO MELHOROU.”

 

VII - A “FILOSOFIA DOS BOIS”:

1. BOI RODAPIÃO E A CRÍTICA AO RACIONALISMO CARTESIANO:

 

O-QUE-COME-DE-OLHO ABERTO” E “NÃO ERA CAPAZ DE FECHAR OS OLHOS P’RA CAMINHAR”.

- A ESTÓRIA DO BOI RODAPIÃO SERVE PARA GUIMARÃES ROSA INTRODUZIR UMA SUTIL CRÍTICA AO RACIONALISMO CARTESIANO, AO QUAL SE REFERIA DE MANEIRA DEPRECIATIVA NUMA CARTA:

ORA, VOCÊ JÁ NOTOU, DECERTO, QUE, COMO EU, OS MEUS LIVROS, [...] DEFENDEM O ALTÍSSIMO PRIMADO DA INTUIÇÃO, DA REVELAÇÃO, DA INSPIRAÇÃO, SOBRE O BRUXULEAR PRESUNÇOSO DA INTELIGÊNCIA REFLEXIVA, DA RAZÃO, DA MEGERA CARTESIANA. (Carta 25/11/1963. ROSA, 1980b, p.58)

 

- CARTESIANO É UM ADJETIVO REFERENTE A DESCARTES, FILÓSOFO, FÍSICO E MATEMÁTICO FRANCÊS, “CONSIDERADO O PAI DA FILOSOFIA MODERNA”, QUE DEU NOME AO PENSAMENTO CARTESIANO.

- O PENSAMENTO CARTESIANO COMEÇA DUVIDANDO DE TUDO, NADA PODENDO SER CONSIDERADO “A PRIORI” COMO CERTO, A NÃO SER UMA COISA:

- “SE DUVIDO, PENSO, SE PENSO, EXISTO”: (“COGITO, ERGO SUM”, “PENSO, LOGO EXISTO”, ponto de partida da Dúvida Metódica, de onde se constrói todo o seu pensamento.

- DESSA MANEIRA, TUDO É SUSCEPTÍVEL DE DÚVIDA; SE DUVIDO ENTÃO SOU UM SER COM A CAPACIDADE DE DUVIDAR, O QUE NECESSARIAMENTE IMPLICA EM PENSAR.

- A MENÇÃO MAIS EXPLÍCITA AO RACIONALISMO CARTESIANO DE RODAPIÃO É QUANDO DIZ:

A GENTE DEVE PENSAR TUDO CERTO, ANTES DE FAZER QUALQUER COISA”. [...] É PRECISO PENSAR CADA PEDAÇO DE CADA COISA, ANTES DE CADA COMEÇO DE CADA DIA.”

- DE MANEIRA MUITO CARTESIANA, RODAPIÃO PROPÕE, UM MÉTODO PARA RACIONALIZAR A PASTAGEM DO CAPIM:

- AS NECESSIDADES ELEMENTARES E PRIMORDIAIS DE COMER E BEBER, ONDE TODA A GRATUIDADE DE “ESTAR” NO MUNDO SÃO ABANDONADOS EM FAVOR DE UM ORDENAMENTO RACIONAL:

“NÓS TEMOS DE PASTAR O CAPIM, E DEPOIS BEBER ÁGUA... INVÉS DE FICAR PASTANDO O CAPIM NUM LUGAR SÓ EM VOLTA, LONGE DO CÓRREGO, P’RA DEPOIS IR BEBER E VOLTAR, É MELHOR A GENTE COMEÇAR DE LONGE E IR PASTANDO E CAMINHANDO, DEVAGAR, SEMPRE EM FRENTE....QUANDO A GENTE TIVER SEDE, JÁ CHEGOU BEM NA BEIRA D’ÁGUA, NO LUGAR DE BEBER; E ASSIM A GENTE NÃO CANSA E TEM FOLGA P’RA SE PODER COMER MAIS!” (ROSA, 1980a, p.306).

- EM SEGUIDA, RODAPIÃO RECORRE À DISSIMULAÇÃO E À MENTIRA E SUGERE IMITAR O BOI CARINHOSO QUE FICOU PARADO E NÃO QUIS COMER E VEIO O HOMEM E LEVOU-O AO CURRAL E DEU PARA ELE MUITO SAL.

“- E ELE FEZ ASSIM MESMO, E AQUILO DEU CERTO; E BOI RODAPIÃO COMEU SAL MUITO E FICOU ALEGRE. NÓS, NÃO.” (ROSA, 1980a, p.306).

 

2. BOI RODAPIÃO E O ILUMINISMO:

 

“É PRECISO ANDAR E OLHAR P’RA CONHECER O PASTO BEM”.

- “VOCÊS NÃO FAZEM COMO EU, SÓ POR QUE SÃO BOIS BOBOS, QUE VIVEM NO ESCURO, E NUNCA SABEM POR QUE ESTÃO FAZENDO COISA E COISA”.

 

- ELE SE FAVORECIA DO RACIOCÍNIO, NO ENTANTO, ESSA FOI A CAUSA DE SUA RUÍNA.

 

3. BOI RODAPIÃO E O LEMA SOCRÁTICO:

 

“CONHEÇA-TE A TI MESMO”.

 

- CONHECER-SE, PERCEBER-SE ERA O CONSELHO DE RODAPIÃO PARA OS OUTROS BOIS, POIS A PASSIVIDADE DE SEUS COLEGAS O IRRITAVA.

 

4. BOI RODAPIÃO E NIETZSCHE: METÁFORA DO COMBATE ENTRE RAZÃO E INSTINTIVIDADE.

 

- RODAPIÃO EM SUA BUSCA PELA VERDADE DESMANTELOU SUA NATUREZA INSTINTIVA, QUE, PARA OS OUTROS BOIS, APARECE COMO UMA FORMA DE LOUCURA.

- PROPÕE SEGUIREM UM CAMINHO RETILINEO (LÓGICO-RACIONAL) PARA ATINGIR SEU OBJETIVO DE FORMA MAIS EFICIENTE POSSÍVEL, EM CONTRAPOSIÇÃO DO CAMINHO TORTUOSO PERCORRIDO PELOS OUTROS BOIS.

- A MORTE DE RODAPIÃO REVELA A FRAGILIDADE DO MÉTODO RACIONAL.

 

5. BOI BRILHANTE E A DEFESA DO REALISMO FILOSÓFICO:

 

“O BOI DA NOITE QUE SAIU DO MATO” - ACEITAÇÃO DA VIDA.

- A NOITE E SUA ESCURIDÃO APARECEM NA ESTÓRIA COMO O SÍMBOLO QUE REMETE A TUDO AQUILO QUE NÃO PODE SER ACESSADO POR VIA RACIONAL, ONDE TODOS OS ABSURDOS SÃO PLAUSÍVEIS, TODAS AS INVERDADES SÃO VERDADES, TODAS AS CERTEZAS, INCERTEZAS.

- APESAR DE TODO MARTÍRIO QUE PASSA DEVIDO A SUA NEGRA PELAGEM, PARADOXALMENTE, APARECE COMO “ILUMINADO” POR UM BRILHO DISTINTO, UMA SABEDORIA ESPECIAL QUE SE CONTRAPÕE ATIVAMENTE AO PENSAMENTO DO HOMEM.

 

- BRILHANTE ASSEMELHA-SE AO SÓCRATES RELATADO POR PLATÃO: ARTICULA O DIÁLOGO COM OUTROS BOIS DA “ACADEMIA DOS BOIS DE CARRO”, TALVEZ MENOS “BRILHANTES”, MAS QUE COMPARTILHAM DO MESMO SISTEMA DE IDEIAS. ELE CAMINHA DORMINDO, EM ESTADO DE SONAMBULISMO. ELE AQUELE QUE TEM “CERTEZA DE SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA”.

UM BOI É AQUELE QUE NÃO PRECISA ABRIR OS OLHOS PARA COMER E PARA CAMINHAR, AQUELE QUE CONFIA NA ORIENTAÇÃO DE SEUS PRÓPRIOS INSTINTOS E QUE, LIBERTO DO JUGO DA RAZÃO, OU SEJA, NO SEU PROFUNDO REALISMO, OS BOIS CONTAM COM AS ESSÊNCIAS PRÓPRIAS DAS COISAS PARA CONFERIR-LHES, EM COMPOSIÇÃO COM O SER.

 

VIII - BOI BRILHANTE (INTUIÇÃO/INSTINTO) VERSUS BOI RODAPIÃO (RAZÃO):

 

- BOI BRILHANTE APONTA A ARROGÂNCIA INTELECTUAL DE RODAPIÃO QUE LEVARAM-O À RUINA: SOFISMA (ARISTÓTELES CLASSIFICARIA COMO UM “SILOGISMO DIALÉTICO”):

- PREMISSA MAIOR: “EM TODO O LUGAR ONDE TEM ÁRVORES JUNTAS, MATO COMPRIDO, TEM ÁGUA.”

- PREMISSA MENOR: “LÁ, LÁ EM-RIBA, QUASE NO TOPO DO MORRO, ESTOU VENDO ÁRVORES, UM COMPRIDO DE MATO.”

- CONCLUSÃO: “NAQUELE PONTO TEM ÁGUA!”

 

- BRILHANTE TENTA ARGUMENTAR, UTILIZANDO UMA “EVIDÊNCIA IMEDIATA”, UM “AXIOMA”:

“EU TAMBÉM OLHEI PARA A LADEIRA, MAS NÃO PRECISEI NEM PENSAR, P’RA SABER QUE, DALI ONDE EU ESTAVA, TUDO ERA LUGAR AONDE BOI NÃO IR.”

MAS BOI RODAPIÃO FALOU COMO O HOMEM:

“EU JÁ SEI QUE POSSO IR POR LÁ, SEM MEDO NENHUM: A TERRA DESSES BARRANCOS É DURA, POR QUE EM LADEIRA ASSIM PAREDE, NO TEMPO DAS ÁGUAS, CORREU MUITA ENXURRADA, QUE LEVOU A TERRA MOLE TODA... NÃO TEM PERIGO, O CAMINHO É FEIO MAS É FIRME. LÁ VOU ....” (ROSA, 1980a, p 312).

 

- RODAPIÃO CONFIA NA CONSISTÊNCIA DA SUA ARGUMENTAÇÃO, EM DETRIMENTO DA EVIDÊNCIA IMEDIATA. EM SEGUIDA, BRILHANTE DESCREVE A QUEDA: “ROLANDO POEIRA FEIA E CHÃO SOLTO...”,

EVIDENCIANDO A CAUSA MATERIAL DA MESMA, E A EVIDENTE APRECIAÇÃO ERRÔNEA DE RODAPIÃO DA SITUAÇÃO.

- “NO FUNDO DO BARRANCO, RODAPIÃO CHEGOU AO FIM “BERRANDO TRISTE”, ATÉ SER COMIDO PELOS URUBUS”.

A QUEDA E MORTE DE RODAPIÃO FUNCIONAM COMO UMA ADVERTÊNCIA CONTRA A RAZÃO (RACIOCÍNIO E PENSAMENTO).

A HISTÓRIA AUXILIA OS BOIS A TECEREM MELHORES REFLEXÕES SOBRE O CARÁTER DO SER HUMANO, QUE SERÁ O FATOR DECISIVO PARA QUE ELES POSSAM AJUDAR O PEQUENO TIÃOZINHO NO FINAL DO CONTO.

 

IX - AGENOR SORONHO (ARROGÂNCIA DE SUA INEGÁVEL HABILIDADE TÉCNICA) E BOI RODAPIÃO (ORGULHO DE TIPO ESPECULATIVO, INTELECTUAL).

 

- NOS DOIS CASOS, A “MORAL DA ESTÓRIA” É QUE A “TOADA TRIUNFAL” ESTÁ RESERVADA: AOS SIMPLES E HUMILDES, AOS BOIS “REALISTAS” E AO, APARENTEMENTE, FRÁGIL, OPRIMIDO E, AO MESMO TEMPO, VINGATIVO TIÃOZINHO.

- PERCEBE-SE, DESTE MODO, UMA IDENTIFICAÇÃO DO PENSAMENTO DE ROSA COM O BOI BRILHANTE. ENQUANTO QUE, SUGERE UMA IDENTIFICAÇÃO DE AGENOR SORONHO COM RODAPIÃO.

 

X - A TRAVESSIA DO MORRO-DO-SABÃO:

 

- AGENOR ENCONTRA OUTRO CARREIRO, JOÃO BALA, COM O SEU CARRO TODO DANIFICADO, POIS HAVIA TENTADO A TRAVESSIA DO MORRO-DO-SABÃO E HAVIA FALHADO. O CARREIRO CONTA SUA FRUSTRANTE AÇÃO E A VALIA DE SEUS DOIS BOIS (MELINDRE E CAMURÇA) NA TENTATIVA PARA SALVÁ-LO.

AGENOR ACHA QUE O OUTRO CARREIRO NÃO PASSA DE UM FALASTRÃO, AINDA MAIS QUE JOÃO BALA TINHA UM GOSTO BOBO DE TER TODOS OS BOIS DE UMA COR SÓ.

EM SUA PSEUDO VIRTUDE, AGENOR SORONHO CONTEMPLA COM DESPREZO A DESGRAÇA DO SEU COLEGA, AINDA QUE DISSIMULE INTERESSE AUTÊNTICO E HUMANA COMISERAÇÃO, COMO TAMBÉM FEZ DURANTE O VELÓRIO DE JANUÁRIO.

 

- AGENOR, RESOLVE, ENTÃO, SUBIR O MORRO-DO-SABÃO COM SEU CARRO E OS OITO BOIS.

“QUE É SÓ P’RA ELE VER COMO CARREIRO DE VERDADE NÃO CONHECE MEDO, NÃO!”

 

- A DIFÍCIL SUBIDA DO MORRO DO SABÃO E A FADIGA DA JORNADA CEDEM LUGAR AO SONO DE AGENOR E DE TIÃOZINHO, ANUNCIANDO O PERIGO.

A NARRATIVA CRESCE EM TENSÃO EVOLUINDO PARA SEU TÉRMINO: AGENOR DORME SOBRE “OS CHIFRES DO CARRO”, NA PONTA DO CARRO, EM LOCAL MUITO ARRISCADO.

 

- TIÃOZINHO DORME, MAS NÃO COMPLETAMENTE, COMO OS BOIS COSTUMAM FAZER, “BABANDO ÁGUA DOS OLHOS”, NUMA ESPÉCIE DE TRANSE.

TRATA-SE DE UM SONO MEIO EM VIGÍLIA. NESSA ZONA INTERVALAR, ONDE A OBSCURIDADE DO “EU SINTO” PRIMA SOBRE A CLAREZA DO “EU VEJO”, AS IMAGENS ONÍRICAS LUTAM PELO SEU DESPERTAR.

 

- NO SONO, SÍMBOLO DA NOITE, AS IMAGENS SE MISTURAM, SE INTERPRETAM, SE ASSIMILAM NUM PROCESSO DE INDIFERENCIAÇÃO ONDE NÃO É POSSÍVEL A CLAREZA DE UMA IDENTIFICAÇÃO PRÓPRIA. DESSE MODO É QUE A VOZ DO BOI CAPITÃO SE MISTURA E SE DESDOBRA NA RESSONÂNCIA DAS VOZES ÍNTIMAS DE TIÃOZINHO CONTRA O MALDOSO AGENOR SORONHO.

TIÃOZINHO ADQUIRE COMPORTAMENTOS TÍPICOS DOS BOIS E PASSA A PARTICIPAR DO DIÁLOGO DELES.

 

- O “VER-SE” NA PELE UM DO OUTRO, ABOLINDO AS DIFERENÇAS E AS HIERARQUIAS (HOMEM-ANIMAL E ANIMAL-HUMANIZADO), REMETE À METÁFORA DE EQUILÍBRIO E O DESEJO DE EXPULSAR PARA LONGE OS MAUS-TRATOS.

TIÃOZINHO TORNA-SE O MEDIADOR ENTRE O REINO HUMANO E O REINO ANIMAL.

ASSIM, ASSUME A SUA CONDIÇÃO DE MINOTAURO:

“- O BEZERRO-DE-HOMEM [...] VIVE MUITO PERTO DE NÓS [...]... QUANDO ESTÁ MEIO DORMINDO PENSA COMO NÓS BOIS [...]. SE ENCOSTA EM NÓS, NO ESCURO ... NO MATO-ESCURO-DE-TODOS-OS-BOIS”.

- EM UMA EPIFANIA COLETIVA, OS BOIS PERCEBEM A SUA PROXIMIDADE COM O MENINO: O PRIMEIRO A SE MANIFESTAR É O CAPITÃO, QUE DIZ SER TANTO O MENINO QUANTO O BOI.

- NAMORADO JÁ DIZ QUE TODOS OS BOIS SÃO UM SÓ, TIÃOZINHO É MESMO UM DOS BOIS.

- BRABAGATO DIZ QUE PODE COM O SENHOR AGENOR SORONHO, COMO SE FOSSE O PRÓPRIO CANDIEIRO.

- DANSADOR É QUEM MAIS SE ENVOLVE COM O MENINO. PERSONIFICA: “SOU TIÃO”... TIÃOZINHO!... MATEI SEU AGENOR SORONHO .... TORNO A MATAR! .... ESTÁ MORTO ESSE CARREIRO DO DIABO!” (ROSA, 2001, p. 359).

 

- A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO BOI RODAPIÃO, OS BOIS PERCEBEM QUE SE “ELE CAIR, MORRE”, REPETINDO DUAS VEZES ESTA FRASE. LOGO EM SEGUIDA, OS BOIS RELATAM O PLANO DE SE LIVRAREM DO CARREIRO AGENOR SORONHO.

A NARRATIVA CULMINA NUMA MISTURA DE FORÇAS, NUM TRANSE FRAGMENTÁRIO, ONDE SE MESCLAM AS FALAS DE TODOS OS BOIS E A DO MENINO GUIA.

UMA POSSESSÃO RECÍPROCA QUE ATESTA, DE UMA VEZ POR TODAS, A COMPLEMENTARIDADE DOS PENSARES.

TRATA-SE DO MOMENTO DO ÊXTASE – “ESTAR FORA DE SI” – NO QUAL SE CONCRETIZA A INTEGRAL FUSÃO DOS DIVERSOS EGOS, A DISSOLUÇÃO DO INDIVIDUAL EM DIREÇÃO AO UNO, COMO SE A RECUSA DA RAZÃO FOSSE TORNANDO-SE MAIS VEEMENTE, ATÉ ATINGIR UM ÁPICE ONDE TODA A RACIONALIDADE É EXTIRPADA EM FAVOR DE UMA TOTAL LIBERAÇÃO DO INSTINTO E MUITO PRÓXIMO DO MARAVILHOSO.

- AO FIM DO TRANSE O DESEJO TRANSFORMA-SE EM ATO: DEPOIS DE UM DIÁLOGO ONÍRICO ENTRE TIÃOZINHO E OS BOIS QUE SE ARQUITETA UMA ESPÉCIE DE COMPLÔ PARA MATAR O CARREIRO, O MENINO “DEU UM GRITO E UM SALTO PARA O LADO, E A VARA ASSOBIOU NO AR”.

- UM REPENTINO SOLAVANCO, PLANEJADO PELOS OITO BOIS, LEVA À QUEDA E AO FATAL ATROPELAMENTO DE AGENOR SORONHO, QUE É PARCIALMENTE DECAPITADO POR UMA DAS RODAS DO VEÍCULO, CUJO CORPO PASSA A FAZER COMPANHIA AO OUTRO DEFUNTO.

O MAIOR OBSTÁCULO DA VIDA DE TIÃOZINHO SE DESFAZ, POR CAUSA DA INTERFERÊNCIA QUASE MÍTICA DOS BOIS.

OS BOIS DA ÚLTIMA GUIA ACABAM PRONUNCIANDO A MORAL DA FÁBULA: “TUDO O QUE SE AJUNTA ESPALHA.”

 

XI - A QUEDA E MORTE DE BOI RODAPIÃO MANTÉM UM SENTIDO DE PROXIMIDADE À QUEDA E MORTE DO FAZENDEIRO AGENOR SORONHO.

 

- O TEMA DA QUEDA É COMUM NA TRADIÇÃO ORAL, ONDE OS PERTURBADORES E TRANSGRESSORES SÃO PUNIDOS, PARA QUE EM SEGUIDA SURJA UMA NOVA ORDEM.

- ENTRETANTO, A QUEDA É TAMBÉM DE TIÃOZINHO, DO PONTO DE VISTA MORAL, QUE SE TORNA O ALGOZ DO PADRASTO, ARRASTANDO-O A UM AMARGO SENTIMENTO DE CULPA, POIS ESTAVA DOMINADO PELO ÓDIO AO CARREIRO, QUERIA MATÁ-LO:

TIÃOZINHO CRESCE DE ÓDIO... SE PUDESSE MATAR O CARREIRO ... DEIXA EU CRESCER! ... DEIXA EU FICAR GRANDE! .... HEI DE DAR CONTA DESTE DANISCO ... “

 

XII - MUDANÇAS DOS NOMES: O NARRADOR DEIXA DE DENOMINAR AGENOR SORONHO E TIÃOZINHO POR SEU NOMES E PASSA NOMEÁ-LOS POR SUAS AÇÕES.

 

1. AGENOR SORONHO:

- “HOMEM-DO-PAU-COMPRIDO”, QUE DETÉM O CONTROLE DA JUNTA E AINDA, “HOMEM-DO-PAU-COMPRIDO-COM-O-MARIMBONDO-NA-PONTA”, OU SEJA, AQUELE QUE PELA IMPOSIÇÃO DA DOR CONTROLA OS BOIS. COM O PROSSEGUIR DA NARRATIVA E OS SENTIDOS DE SORONHO MENOS ATENTOS, ELE PASSA A SER DENOMINADO APENAS “HOMEM”.

- AGENOR SORONHO SOMENTE VOLTA A TER UM NOME AO MORRER, SEM ALARDE, INSIGNIFICANTEMENTE.

 

2. TIÃOZINHO:

- DURANTE A NARRATIVA, TIÃOZINHO VAI SE FORTALECENDO AO DEIXAR DE SER MENINO E SE TRANSFORMAR NO “BEZERRO-DE-HOMEM-QUE-CAMINHA-SEMPRE-NA-FRENTE-DOS-BOIS”, OU SEJA, QUE ESTÁ PRÓXIMO AOS BOIS, PORÉM AINDA NÃO SE IDENTIFICA COM ELES, POIS CAMINHA NA FRENTE.

- DEPOIS PASSA A SER NOMEADO POR “BEZERRO-DE-HOMEM-QUE-CAMINHA-ADIANTE”, NÃO MAIS NA FRENTE DOS BOIS, OU SEJA, AQUELE QUE PODE, INCLUSIVE, CAMINHAR AO LADO DOS BOIS.

- AO SER DENOMINADO APENAS POR “BEZERRO-DE-HOMEM”, ELE GANHA A SIMPATIA DOS ANIMAIS.

- ESTA IDENTIFICAÇÃO CADA VEZ MAIOR DOS BOIS COM TIÃZINHO FAZ COM QUE ELE SE INSIRA NA JUNTA E PASSEM A SER ÚNICOS: NEM MENINO NEM BOIS, ESTÃO UNIDOS PELA GENEROSIDADE, COMPAIXÃO E LUTA CONTRA A OPRESSÃO.

- E O MENINO DESPROTEGIDO DO INÍCIO DO CONTO SE TORNA:

“EU, TIÃOZINHO! ... SOU GRANDE, SOU DONO DE MUITAS TERRAS, COM MUITOS CARROS DE BOIS, COM MUITAS JUNTAS ... NINGUÉM PODE MAIS NEM FALAR NO NOME DO SEU SORONHO ... NÃO DEIXO! ... 

SOU O MAIS FORTE DE TODOS ... NINGUÉM PODE MANDAR EM MIM! ... TIÃOZÃO ... TIÃOZÃO ... (ROSA, 1984, p. 335)

 

XIII - POSIÇÃO E FUNÇÃO DOS BOIS:

1. BOIS MENORES SEGUEM NA FRENTE: BUSCAPÉ E O NAMORADO.

2. OS MAIS SÁBIOS NO MEIO: BRABAGATO E CAPITÃO; DANSADOR E BRILHANTE.

3. OS MAIS FORTES ESTÃO MAIS PRÓXIMOS DE TIÃOZINHO: CANINDÉ E REALEJO, SÃO OS QUE PODERÃO OFERECER A ELE ALGUM TIPO DE PROTEÇÃO FÍSICA.

 - NO ENTANTO, AS SOLUÇÕES DOS PROBLEMAS DE TIÃOZINHO VÊM DO DANSADOR, DO BRILHANTE E DO CAPITÃO. E POR FIM HÁ O BOI REALEJO, CUJO NOME REPORTA À EPÍGRAFE DA NARRATIVA RETIRADA DO CORO DO BOI-BUMBÁ: “- Lá vai! Lá vai! Lá vai... - Queremos ver... Queremos ver... - Lá vai o boi Cala-a-Boca fazendo a terra tremer. ” (ROSA, 1984, p. 302)

 

XIV - O JOGO SIMBÓLICO DAS NOÇÕES DE DIA (LUZ-RAZÃO) E NOITE (ESCURO-INTUIÇÃO):

- O PENSAMENTO DOS BOIS ELEGE A NOITE COMO METÁFORA DE SUA PSIQUE: ONDE O SUJEITO E OBJETO SE MISTURAM NUMA TOTAL INDIFERENCIAÇÃO.

 

XV - BEM E O MAL: O FRACO VENCE O FORTE; O INSTINTO VENCE O RACIONAL; A CUMPLICIDADE E A UNIÃO, VENCEM O MAL.

- MUITO ALÉM DO EMBATE ENTRE BEM E MAL, ESSA FÁBULA TRÁGICA APONTA PARA A CONCEPÇÃO HERACLÍTICA:

“TODAS AS COISAS, EM TODOS OS TEMPOS, TÊM EM SI OS CONTRÁRIOS.” (Heráclito, apud Nietzsche, 1995: 40)

- TIÃOZINHO É A PURA MANIFESTAÇÃO DE UMA VONTADE DE POTÊNCIA, INTENSIFICADA DURANTE OS MOMENTOS DO TRANSE, DA MESMA FORMA, NÃO É POSSÍVEL TOMAR A FIGURA DE SORONHO COMO ENCARNAÇÃO DO MAL SUPRASSENSÍVEL.

- NESSE MOVIMENTO, BEM E MAL SÃO DESTITUÍDOS DE SEU VALOR INTRÍSECO E PASSAM A EXISTIR COMO PARTES INTEGRANTES DE UM MESMO COMPLEXO DE FORÇAS.

 

XVI - TIÃOZINHO E BOI BRILHANTE: REPRESENTAM O “BEM”

- AMBOS SOFREM COM A PERDA DE PARENTES QUERIDOS (TIÃOZINHO PERDEU O PAI E BRILHANTE O IRMÃO).