sexta-feira, 4 de junho de 2010

POÉTICA I


De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

Na primeira estrofe, o poeta estabeleceu uma conexão lógica entre os espaços de tempo que instituem o dia (manhã, tarde, dia e noite), a fim de caracterizar a passagem do tempo. Trabalhou com a antítese, demonstrando que a sequência temporal que forma a vida é cheia de contrastes, de negação: manhã X escureço, talvez por interpretar manhã como o início, a inexperiência; tarde X anoiteço talvez por interpretar anoiteço, como cobrir de trevas (um dos significados figurado, de trevas é estupidez, ignorância); noite X ardo (perceber que arder, além de significar consumir-se em chamas, também significa estar aceso). É a ambiguidade da vida: no início, a inexperiência marca nosso viver; na adolescência, a ignorância ou seja, o início do aprendizado; na fase adulta, a sabedoria, a habilidade, a prática da vida.

Já na segunda estrofe, o poeta trabalhou com os pontos cardeais, elementos fixos, contrastando com a dinamicidade do tempo (tempo=dinâmico X espaço= fixo). Ao dizer o “O este é meu norte”, empregou o verbo nortear, cujo significado é dirigir, orientar, guiar, então ele diz que se guiava pelo este (leste), local em que o Sol nasce, ou onde está o oceano, que representa a saída para a Europa, o berço da civilização e da cultura (Vinicius viveu muitos anos no exterior).

A oeste a morte contra quem vivo: O oeste, onde o Sol se põe, representa o fim, a morte.

Do sul cativo: pode significar que ele se sentia seduzido pelo sul, talvez pelo hemisfério sul, onde se situa o Brasil.

Outros que contem passo a passo, ou seja, os outros é que possuem a responsabilidade de se preocupar com a sucessão de dias; a ele cabia o ato de renovar-se constantemente.

“Eu morro ontem”/”Nasço amanhã”, sem se inquietar com os acontecimentos cotidianos.

Ando onde há espaço, ou seja, ele não se preocupava com o espaço em que se encontrava. O que importa é viver o presente, independentemente do lugar em que se encontra.

Meu tempo é quando pode representar o eterno, ou seja, também não importa a época em que se vive. O que importa é viver, enfrentando as vicissitudes, as contradições, as negações que se nos apresentam durante a vida.

Segundo Carlos Felipe Moisés (ver bibliografia), a sequência vertical da primeira estrofe manhã-dia-tarde-noite obedece a um encadeamento lógico: a passagem natural do tempo. Tal encadeamento é rompido na linha horizontal, já no primeiro verso ("escureço" se opõe à "manhã") e ganha ambiguidade no quarto, em que "ardo" conota claridade, em oposição ao escuro da noite, mas, sobretudo, ganha passionalidade (arder, ardor de amor). Isso aproxima parcialmente os extremos, dia e noite, e sugere a passagem do tempo como sucessão de contrates, negação de expectativas, em um clima de intenso subjetivismo (1ª pessoa).

Na segunda estrofe, numa atitude de liberdade, de anticonvencionalismo, o eu lírico diz-se guiar pelo "este" e não pelo "norte" como todos fazem. O último verso da última estrofe privilegia o circunstancial (não é "aquilo que" acontece, mas o "momento quando" acontece que realmente importa), valorizando a disponibilidade do instante presente, para que seja intensamente vivido. Observando o aspecto formal do poema, parece haver
ali um soneto renovado. Isso confirma a valorização da liberdade e do individualismo, da insubordinação e da disponibilidade, também para o ato de criação poética.

Na saída de um show em Portugal, diante de estudantes salazaristas que protestavam contra ele na porta do teatro, Vinicius declama os versos de "Poética" (De manhã escureço / De dia tardo / De tarde anoiteço / De noite ardo). Um dos jovens tirou a capa do seu traje acadêmico e a colocou no chão para que Vinicius pudesse passar sobre ela - ato imitado pelos outros estudantes e que, em Portugal, é uma forma tradicional de homenagem acadêmica.

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