domingo, 8 de agosto de 2010

O cortiço - Aluísio de Azevedo


O CORTIÇO (1890)

I – AUTOR:
Aluísio Azevedo (A. Tancredo Gonçalves de A.), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913. É o fundador da Cadeira n. 4 da Academia Brasileira de Letras.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de d. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um rico e ríspido comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se, fazia caricaturas para os jornais da época, como O Figaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses "bonecos" que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense, não só pela crua linguagem naturalista, mas, sobretudo, pelo assunto de que tratava: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde fazer o caminho de volta para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção: romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 encerrou a carreira de romancista e ingressou na diplomacia. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, que Aluísio adotou. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1a classe, sendo removido para Assunção. Depois foi para Buenos Aires, seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado definitivamente.


II – CONTEXTO SÓCIO-POLÍTICO DA ÉPOCA:

A segunda fase da Revolução Industrial iniciou-se em 1850 e o processo de industrialização entrou num ritmo acelerado, envolvendo os mais diversos setores da economia, com a difusão do uso do aço, a descoberta de novas fontes energéticas, como a eletricidade e o petróleo, e a modernização do sistema de comunicações.
No aspecto social, estabeleceu-se um distanciamento cada maior entre o operariado (ou proletariado), vivendo em condições de miséria, e os capitalistas. Atraídos pelo desenvolvimento acelerado e pela ilusão de enriquecimento fácil, multidões abandonam o campo rumo aos grandes centros urbanos.
...E criam novas máquinas; eficientes que substituem a mão-de-obra do operariado.
Desemprego, miséria, mendicância, doença, prostituição: eis o painel do mundo ocidental da segunda metade do século XIX.
No campo das idéias surgem várias correntes de pensamento, buscando a compreensão objetiva do homem e a sociedade: o racionalismo positivista de Augusto Comte; o determinismo de Taine; a psicanálise de Freud; o evolucionismo de Darwin e o socialismo de Marx.
No século XIX, com a transmigração da família real para o Brasil, a abertura dos portos e a transformação da capital da colônia em sede do reino, depois império, a sociedade se complexifica e consequentemente a cidade cresce. A introdução do trabalho assalariado, substituindo a escravidão, liberou capitais até então empatados, que passam doravante a se destinar a outros ramos de atividade econômica, como uma incipiente indústria, o comércio internacional e os serviços financeiros. Em contrapartida, excedentes de mão de obra livre que são excluídos do campo, uma vez que o pólo cafeeiro se deslocou para o estado de São Paulo, dirigem-se para a cidade, vindo engrossar a fileira dos trabalhadores manuais não especializados. Muitos deles passam a atuar como vendedores ambulantes e prestadores de serviços (ferreiros, torneiros, carroceiros, taverneiros, soldados de polícia, empregados do comércio).
Com isso a cidade se povoa - e, portanto, a literatura. Ela se povoa de "gente graúda" e "gente miúda". O primeiro grupo se compõe basicamente de estrangeiros ricos, que vão integrar a elite social: ingleses financistas, franceses do comércio de luxo, portugueses atacadistas. Somente a última nacionalidade é retratada no romance, através dos dois protagonistas e concorrentes, Miranda e João Romão, que representam dois lados da fortuna e, consequentemente, de comportamento e de posição na sociedade.
O segundo grupo é formado por gente com os mais variados matizes de cor da pele, desde os migrantes internos, provenientes do norte do país como a sensual mulata Rita Baiana ou do interior do estado, todos atraídos pelas possibilidades da embrionária metrópole, até os imigrantes europeus, como os trabalhadores portugueses, italianos e judeus que moram no cortiço. Por sinal sobre eles recaem estereótipos negativos: alguns generalizados, como a barulheira e o mau cheiro do corpo, outros mais específicos, como a avidez do judeu ou a sujeira e a bagunça dos italianos.
Numa sociedade periférica como a brasileira, o fenômeno de valorização da cidade se reproduz e se intensifica ainda mais no último terço do século XIX, que se assinala por ser o período em que a presença francesa se fez mais forte e influente no Brasil. Haja vista, por exemplo, a magnitude de que se revestiu o Positivismo entre nós. É nesse contexto que vem a lume O cortiço, obra que tomamos como referência para caracterizar a realidade urbana do Rio de Janeiro a partir de um texto literário.
Contudo, independentemente das profundas relações entre a produção de Aluisio Azevedo e a de Émile Zola - questão que não será abordada aqui -, o criador da corrente naturalista no Brasil alcança produzir um rico e diversificado panorama da então capital do Império, num romance bem sucedido que, entretanto, não se propõe a este objetivo precípuo, uma vez que, como o próprio título indica, dedica-se a focalizar as camadas populares, centrando-se na residência coletiva, habitada por uma classe em constituição, a dos trabalhadores manuais livres, em coexistência com os últimos estertores do sistema escravagista.

III – CARACTERÍSTICAS DO ROMANCE NATURALISTA:

Em 1867, Émile Zola edita Téresè Raquin, iniciando o Naturalismo, uma ramificação científica do Realismo.
Émile Zola por Manet, 1868

O escândalo provocado por Thérèse Raquin entre os críticos trouxe um resultado inesperado: serviu de propaganda aos ideais naturalistas do romance, colocando a recém-nascida escola literária em voga. Sob esse pretexto, a obra obteve uma nova edição no ano seguinte, acompanhada por um prefácio, no qual Zola defende as máximas do naturalismo literário: a necessidade de realizar uma análise científica minuciosa da alma humana, sem idealizações morais. Dessa maneira (nas palavras do próprio Zola) cada capítulo constitui o estudo de um caso curioso de fisiologia.

O naturalismo, corrente literária fundamentada em aspectos cientificistas, reflete as mudanças ocorridas nos campos econômico, político-social e cultural que explodiram em meados do século XIX.
As teorias cientificistas influenciaram profundamente a elaboração dos enredos e a construção das personagens do romance naturalista. O escritor dessa tendência analisa o indivíduo a partir dos componentes hereditários e das circunstâncias ambientais que determinam o seu comportamento, ao contrário do romântico que anteriormente procurava idealizar o homem e a natureza.
O foco do naturalismo consiste em retratar a realidade de maneira objetiva, desnudando as mazelas humanas e sociais. Daí o interesse em descrever grupos marginalizados, valorizando-se a coletividade, cada vez mais em evidência devido às transformações que se estabeleciam no cenário mundial. Podemos tomar como exemplo a Revolução Industrial que impulsionava o capitalismo e fazia surgir os grandes centros industriais, reunindo uma massa operária que inchava as cidades e que não dispunha dos recursos necessários para viver dignamente.
Diferentemente do romance realista que procura ver esteticamente os problemas sociais, o romance naturalista vai além direto e cientificamente aos problemas da sociedade, buscando desvendar suas causas segundo os preceitos deterministas.
Partindo do pressuposto de suas leituras científicas e observando obras naturalistas de escritores europeus como Èmile Zola e Hipólito Taine, para quem o homem era produto do meio da raça e do momento histórico, Aluísio de Azevedo seguiu a risca o estilo naturalista de determinismo e evolucionismo ilustrado seguidamente na obra supracitada.

IV – ESPAÇO E TEMPO:

O uso do espaço urbano pelas personagens de O cortiço permite configurar a obra de Aluísio Azevedo como um romance de localização especificamente carioca. Nele, são flagradas a cidade e a sociedade em estado de mutação, quando se adapta para o ambiente urbano a dicotomia de casa grande e senzala, agora traduzida pelos contrastes simbolizados pela oposição entre cortiço e sobrado. Assim, a preocupação com a veracidade, própria do realismo-naturalismo, fornece um painel da cidade, em momento de profunda transformação social, cultural, humana. Graças à minuciosa pesquisa que empreendeu, Aluísio Azevedo transformou seu romance em um documentário não só sobre a acumulação de capital como também sobre a cidade do Rio de Janeiro, através da vida, trabalho, moradia e lazer de seus habitantes
Pode-se começar a proceder a uma análise sociológica de O Cortiço pelo exame dos espaços físicos: o cortiço e o sobrado onde seu enredo se desenvolve, buscando compreender como se projeta a relação personagem versus ambiente, bem como as relações sociais presentes na obra sob a ótica determinista de Aluísio Azevedo.
“Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação [...] Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem". (Aluísio Azevedo. O Cortiço, cap. I, p.21).
“Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separada desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado''. (Idem, ibidem, cap.I, p.13).
O cortiço é considerado a personagem mais convincente da obra, uma vez que se projeta de tal forma, destacando-se mais do que as próprias personagens que ali vivem.
"E durante dois anos o Cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas e cujas raízes piores e mais grossas do que serpentes minavam por toda parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e rebentando tudo". (AZEVEDO, 2005, p.23)
Percebe-se aqui a fórmula naturalista em que as descrições do espaço tornam-se fundamentais para o entendimento da obra. É como afirma Bossi (1994), "Existe o quadro: dele derivam as figuras"

V - LINGUAGEM:
Uma análise estilística apresenta a linguagem de O Cortiço, em sua plurivalência de nacionalidades: mostra como o francês, o italiano, o português de Portugal, o falar do cortiço, o falar dos salões constituindo conjuntos que integralizam a língua brasileira num sentido mais amplo.
Sua língua é mestiça como suas personagens e se espalha pelo simples e pelo complexo. Por aí se poderia chegar a tocar de novo no problema da ideologia que configurou o romance. Ideologia esta que tanto mais se configura quanto mais se sabe que a arte de Aluísio se voltava para o receptor. Sua produção tinha um endereço certo: o jornal, o teatro e uma grande massa de leitores.

VI – PERSONAGENS: OS TIPOS HUMANOS
João Romão
"E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia o vinha de pedreira para a venda, de vende As hortas é ao capinzal, sempre em mangas de camisa, tamancos, sem meras, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas".
"... possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estepe cheio de palha".
Bertoleza
“Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante.”
Esta personagem, negra e mulher, na condição total de inferioridade, ao lado, ou melhor, aos pés de João Romão, no romance aparece sempre como submissa.
Albino
"Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de aspargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até o pescocinho mole e tino."
Botelho
"Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos, antipático, cabelo branco, curto e duro como escova, barba e bigode do mesmo teor, muito macilento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam o tamanho de pupila e davam-lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de acordo com o seu nariz adunco e com a sua boca sem lábios: viam-lhe ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam limados até ao meio ... foi lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina ".

VII - RESUMO:
João Romão, português, bronco e ambicioso, ajuntando dinheiro a poder de penosos sacrifícios, compra pequeno estabelecimento comercial no subúrbio da cidade (Rio de Janeiro).
Ao lado morava uma preta, escrava fugida, trabalhadeira, que possuía uma quitanda e umas economias. Os dois amasiam-se, passando a escrava a trabalhar como burro de carga para João Romão. Com o dinheiro de Bertoleza (assim se chamava a ex-escrava), o português compra algumas braças de terra e alarga sua propriedade.
Para agradar a Bertoleza, forja uma falsa carta de alforria. Com o decorrer do tempo, João Romão compra mais terras e nelas constrói três casinhas que imediatamente aluga. O negócio dá certo e novos cubículos se vão amontoando na propriedade do português.
A procura de habitação é enorme, e João Romão, ganancioso, acaba construindo vasto e movimentado cortiço. Ao lado vem morar outro português, mas de classe elevada, com certos ares de pessoa importante, o Senhor Miranda, cuja mulher leva vida irregular. Miranda não se dá com João Romão, nem vê com bons olhos o cortiço perto de sua casa.
No cortiço moram os mais variados tipos: brancos, pretos, mulatos, lavadeiras, malandros, assassinos, vadios, benzedeiras etc. Entre outros: a Machona, lavadeira gritalhona, "cujos filhos não se pareciam uns com os outros"; Alexandre, mulato pernóstico; Pombinha, moça franzina que se desencaminha por influência das más companhias; Rita Baiana, mulata faceira que andava amigada na ocasião com Firmo, malandro valentão; Jerônimo e sua mulher, e outros mais. João Romão tem agora uma pedreira que lhe dá muito dinheiro. No cortiço há festas com certa frequência, destacando-se nelas Rita Baiana como dançarina provocante e sensual, o que faz Jerônimo perder a cabeça. Enciumado, Firmo acaba brigando com Jerônimo e, hábil na capoeira, abre a barriga dó rival com a navalha e foge.
Naquela mesma rua, outro cortiço se forma. Os moradores do cortiço de João Romão chamam-no de "Cabeça-de-gato"; como revide, recebem o apelido de "Carapicus".
Firmo passara a morar no "Cabeça-de-Gato", onde se torna chefe dos malandros. Jerônimo, que havia sido internado em um hospital após a briga com Firmo, arma uma emboscada traiçoeira para o malandro e o mata a pauladas, fugindo em seguida com Rita Baiana, abandonando a mulher.
Querendo vingar a morte de Firmo, os moradores do "Cabeça-de-gato" travam séria briga com os "Carapicus". Um incêndio, porém, em vários barracos do cortiço de João Romão põe fim à briga coletiva. O português, agora endinheirado, reconstrói o cortiço, dando-lhe nova feição e pretende realizar um objetivo que há tempos vinha alimentando: casar-se com uma mulher "de fina educação", legitimamente. Lança os olhos em Zulmira, filha do Miranda. Botelho, um velho parasita que reside com a família do Miranda e de grande influência junto deste, aplaina o caminho para João Romão, mediante o pagamento de vinte contos de réis. E em breve os dois patrícios, por interesse, se tornam amigos e o casamento é coisa certa.
Só há uma dificuldade: Bertoleza. João Romão arranja um piano para livrar- se dela: manda um aviso aos antigos proprietários da escrava, denunciando-lhe o paradeiro. Pouco tempo depois, surge a polícia na casa de João Romão para levar Bertoleza aos seus antigos senhores. A escrava compreende o destino que lhe estava reservado, suicida-se, cortando o ventre com a mesma faca com que estava limpando o peixe para a refeição de João Romão.
Embora imbuído de uma visão determinista, observando o homem como um animal, uma presa de forças fatais, Aluísio Azevedo nos legou uma grande obra. Retratou os atritos, as dramas provenientes do sexo e do dinheiro. Insinuou do princípio ao fim o percurso trágico de suas personagens, contrastando a generosidade de Bertoleza com a avareza de João Romão, o suicídio desta - fato que ocorre no fim do romance como ponto culminante do enredo, significando o máximo da crise resultante deste aglomerado de massa humana.

VIII - TEMÁTICA:

O ROMANCE SOCIAL:

Desistindo de montar um enredo em função de pessoas, Aluísio atinou com a fórmula que se ajustava ao seu talento: ateve-se à sequência de descrições muito precisas, onde cenas coletivas e tipos psicologicamente primários fazem, no conjunto, do cortiço a personagem mais convincente do nosso romance naturalista.
Todas as existências se entrelaçam e repercutem umas nas outras. O Cortiço é o núcleo gerador de tudo e foi feito à imagem de seu proprietário, cresce, se desenvolve e se transforma com João Romão.


A CRÍTICA DO CAPITALISMO SELVAGEM:

O tema é a ambição e a exploração do homem pelo próprio homem. De um lado João Romão que aspira à riqueza e Miranda, já rico, que aspira à nobreza. Do outro, a gentalha, caracterizada como um conjunto de animais, movidos pelo instinto e pela fome.
No espaço de João Romão o narrador insiste na antropomorfização das personagens caindo no código anti-romântico de despersonalização; para o narrador, no Cortiço, já não se distinguem homens de animais, objetos ou vegetais.

O DETERMINISMO:

O Cortiço é o grande representante do naturalismo no Brasil. Essa obra caracteriza-se principalmente pelo aspecto experimental nela desenvolvido, analisando o homem como um simples produto da hereditariedade e do meio em que vive.
É a despeito das descrições minuciosas do ambiente e do cuidadoso estudo dos elementos biográficos a cerca dos indivíduos que Aluisio constrói uma narrativa extremamente relacionada aos fatores externos. Não há interesse em descrever o aspecto psicológico das personagens, o que predomina é a intenção de mostrar, de maneira fria e precisa, como o homem age sobre o meio e vice-versa.
Para Sodré (1995), “O Cortiço pinta o cenário urbano do final do século XIX e nele está perfeitamente fotografada a sociedade desse tempo, com as suas mazelas e as suas chagas. O autor desse livro não se propõe a solucionar os problemas da sociedade, mas sabe colocá-los em suas verdadeiras dimensões”.
Não é por acaso que toda a trama do romance relaciona-se com o cortiço e sua gente. Por tratar-se de uma habitação coletiva, povoada por seres marginalizados, o autor pode facilmente explorar como se processa o comportamento dessa coletividade. Faz-se latente uma critica social, cujo papel é denunciar a podridão da sociedade, ganhando nesse sentido, também, um caráter documental, pois os fatos estão estreitamente voltados para a realidade.

No Caso d’O Cortiço estão dispostas duas classes que se defrontam mostrando como elas se agrupam e como se relacionam. Uma representada pelo cortiço e pela venda de João Romão, formada pelos grupos desprivilegiados: os operários, os mestiços, a plebe em geral, que se destaca pela presença do elemento fisiológico, natural e instintivo. A outra é visualizada no sobrado do Miranda, representando a burguesia e define-se pela cultura que apresenta.
O jogo de interesses, o regime de trocas e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são estabelecidas as relações entre os grupos. Exemplo disso é João Romão, português de origem humilde, que se torna proprietário de uma venda e contando com a ajuda de sua companheira, a crioula Bertoleza, deu início a construção do cortiço São Romão. Não foi fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração tanto de Bertoleza quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda, dos empregados da pedreira, enfim, João Romão é o mais autêntico representante da exploração alheia. Tais evidências se encontram em todo o romance:

“João Romão não saía nunca a passeio, nem ia a missa aos domingos; tudo o que vendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para o banco”.

“Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visam o interesse pecuniário. Das suas hortas colhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que por maus ninguém compraria...”

“Por ali não se encontrava jornaleiro, cujo ordenado não fosse inteirinho parar nas mãos do velhaco. E sobre esse cobre quase sempre emprestado aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mês...”

Enriquecer era o principal objetivo de João Romão e para isso ele não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo. Sua ambição vai despertar, ainda, o desejo de crescer também culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda. Começa a partir daí a operar-se uma transformação nessa personagem devido ao convívio que ele havia estabelecido com a família do outro. Foi graças a essa proximidade que João Romão pôde vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele, pela hereditariedade, já pertencia a uma classe superior - o branco.
É possível fazer a análise do pensamento de Taine, não há nenhuma expectativa de movimentação social dos moradores do cortiço, relegadas assim às determinações de maneira suposta já definidas étnicas (raça), social (meio) e historicamente (momento), como acreditavam os naturalistas, identificando em Bertoleza esse determinismo nos três aspectos: sendo que, no aspecto Raça, identificamos na personagem o fato de ser negra, e, além disso, escrava, sabendo que o romance é de uma época abolicionista, em que acontecia a abolição, no entanto, os escravos permaneciam em situação de vulnerabilidade social, passando a ser escravo fora da senzala, “ _ agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta ” enquanto esse trecho dá a idéia de libertação, já este “varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna (...) à noite passava-se para a porta da venda (...) fritava fígado e frigia sardinhas ...”, nos remete a outro tipo de escravidão.
Acerca do Meio percebe-se que o espaço do cortiço influencia de tal forma nos comportamentos dos que ali habita que mesmo os vindos de outro país, mudam seus hábitos e sua personalidade, tornando-se pessoas de hábitos inferiores, como é o caso do personagem Miranda, que ao morar no cortiço diminui consideravelmente seu status social e seu poder financeiro, sendo isso influencia do meio, isto posto, também Bertoleza sofre essa influencia, morando no cortiço não poderia fugir da sua condição.
Por fim, na análise do Momento Histórico, a personagem é influenciada de forma ainda mais brusca, já que, se despedindo do regime escravocrata, a sociedade do século XIX é também burguesa, como já citamos, o negro escravo, submisso, cheio de características execráveis, é retratada na personagem.
Dessa forma, podemos concluir esta análise de Bertoleza, tendo ela como a submissa e sendo suas características extremamente influenciadas pelas idéias em ascensão no século XIX.
O mesmo fato não se repetiu em Jerônimo, também branco e português que se mudou para o cortiço e foi trabalhar na pedreira. Apesar de Jerônimo pertencer à plebe, a mudança operou-se nele ao contrário da realizada em João Romão. Ligado às tradições lusitanas, a família e muito trabalhador, a influência do meio agiu sobre o cavouqueiro de forma degradante.

“Jerônimo abrasileirou-se” após a mudança para o cortiço, mas o fator decisivo para essa transformação foi a sua paixão pela mulata Rita Baiana, que era muito dada a patuscadas. Esse processo ocorreu lentamente, porém foi definitivo como podemos constatar:

Mais uma vez o determinismo se impõe não só na figura do português, mas também no estereótipo da mulata brasileira. Rita como mulata é um tipo que referencia a sensualidade, característica atribuída a mulher negra desde o início da sociedade brasileira.
A trajetória da mestiça em nossa sociedade principia com o regime de escravidão, em que a negra realizava todo tipo de tarefas, assim como tinha por dever satisfazer os desejos sexuais de seus senhores que não podiam realizá-los com as esposas.
A negra cedeu lugar a mulata que se mostrava mais bela nas feições e ainda reunia os dotes exóticos da mestiça. Essa marca perpetuou-se por toda a história dessas mulheres que continuaram, e ainda hoje continuam a serem vistas como objeto de satisfação sexual masculina.
A propósito da mulata na obra de Aluísio, podemos notar esses mesmos aspectos pela forma como ele refere-se a Rita:

“Os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher”.

Toda a discrição da mulata segue a teoria naturalista, condicionando-a aos fatores de raça e ambiental. Esse tal determinismo que impõe ao indivíduo características e sobre o qual ele não exerce nenhuma defesa, poderia, então, ser encarado simplesmente como uma análise fria e imparcial da sociedade ou como uma forma disfarçada de preconceito.

NOVA IDENTIDADE DA FORMAÇÃO DA RAÇA BRASILEIRA:
Por esse período, só erguia-se, no país, o debate acerca de uma historiografia literária párea a uma convencionalização do que Machado de Assis denominou de “instinto nacional”. Segundo Regina Zilberman, no livro Literatura e Identidades, apesar dos textos de Gonçalves Dias e de José de Alencar tematizarem sobre o índio, não era ele elemento de expressiva representação no painel que compunha a verdadeira identidade nacional:
O nacional correspondia a um termo genérico, mas sua prática levava-o a valorizar o que era burguês, no modo que esse via, a si próprio: heróico, dominador, proprietário de um território em que sua voz prevalecia. (ZILBERMAN, 1999, p.51)

Machado de Assis, em análise à poesia indianista, no texto Instinto de Nacionalidade, predica que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem recebeu influxo algum dele. Machado de Assis, ainda no texto supracitado, prediz sua futura índole ao afirmar que o escritor deve tornar-se um homem do seu tempo e do seu país, embora trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.
A preocupação, em voga, na era Real/Naturalista, acerca do que seria uma literatura nacional progredia. O projeto historiográfico da literatura, no Brasil, delineava a incipiência da crítica, contudo como assinalou o próprio Machado, a independência literária deitava-se ao devir, constituindo-se uma independência que “não tem sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente (...) não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo” (Machado de Assis, 1873). Sabendo-se que a teoria torna-se anacrônica diante da práxis literária; esta, diante da ascensão científica, aspirava, na contemporaneidade, a um diálogo com o novo mundo positivista. Importava ser anti-romântico, em tempos nos quais a burguesia via o mundo por sobre a muralha dos seus próprios bens. Mas que indicativos surgiam no que tange à identidade nacional?

O IMIGRANTE PORTUGUÊS:
Tematizando a problemática da migração, pode-se constatar nas obras de Aluísio Azevedo, um posicionamento epigramático, sobretudo, em O Cortiço (1890). É atribuído ao imigrante português o centro de embate da obra. Assim, de um lado está João Romão, dono de um comércio de secos e molhados, que por meio de todas as ilegalidades possíveis, fez-se proprietário de um cortiço, em oposição ao patrício Miranda, que sendo dono de um sobrado, constituía-se a base da inveja que imperava nas vísceras de João Romão de modo a privar-se de todo conforto na quase insuportável escalada ao topo do status quo. “Travou-se então uma luta renhida e surda entre o português negociante de fazendas por atacado e o português negociante de secos e molhados” (Azevedo, 1993, p.27).
A partir de tal polaridade, são estabelecidos inúmeros elementos carnavalizadores no texto: o cortiço, que se arrastava por sobre os sonhos do proletariado que ali se instalava (sobretudo a mão de obra da população local que se contrapunha a dos imigrantes pobres que vinham em busca de melhores condições de vida), tornava-se o eixo contraposto ao sobrado, que ostentava as regalias do português rico, embora “escravo de uma brasileira mal-educada e sem escrúpulos de virtude”. Enquanto João Romão lutava contra os próprios limites do corpo com uma carga de trabalho brutal, a fim de obter fortunas, Miranda vencia o orgulho próprio ao ter que relevar as traições da esposa, fonte da sua loja de fazenda por atacado. A figura do imigrante “forasteiro e aproveitador” configura-se na postura de ambos, embora em circunstâncias adversas.
“Feliz e esperto era João Romão! Esse, sim, senhor! Para esse é que havia de ser a vida!... Filho da mãe, que estava hoje tão livre e desembaraçado como no dia em que chegou da terra sem um vintém de seu! esse, sim, que era moço e podia ainda gozar muito, porque, quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe saísse outra Estela, era só mandá-la pra o diabo com um pontapé! Podia fazê-lo! Para esse é que era o Brasil.” (AZEVEDO, 1993, p.33)
Na obra, a personagem Jerônimo, passando por um processo de transculturação recebeu em igual proporção os malefícios de uma identificação, que sendo imposta aos nativos pelo europeu, ainda impera como referente característico dos brasileiros, como se “malandros” fossem dentro da liberdade de adequação, sem a sujeição aos paradigmas impostos pelos colonizadores.

“Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele (...) A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal... e volvia-se preguiçoso, vencido, às imposições do sol e do calor (...) E curioso é que quanto mais ele ia caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam...”.
A identidade nacional reconhecida na obra é constituída de elementos degradantes: Jerônimo arruinou-se, “abrasileirou-se para sempre” – vítima dos males advindos por ação dos seus patrícios, sim. A cultura brasileira foi construída, sobretudo por quem? Jerônimo é a síntese mimética da personalidade fabricada pela aculturação.

SEXUALIDADE DA MULATA VERSUS O IMIGRANTE PORTUGUÊS:

Di Cavalcanti
No que diz respeito à problemática sexual, brotam do hibridismo étnico da terra os elementos utilizados por Aluísio Azevedo para destacar o papel da sexualidade instintiva, mormente no que tange ao papel da “mulata literária”. Demonstra, por meio dela, a animalidade sexual a que se submete a condição humana diante dos preceitos da corrente naturalista. Rita Baiana, por exemplo, “é o perfil mais acabado desse ‘elemento perigoso’ que habitou o mundo ficcional brasileiro dos oitocentos” (Jean Marcel Carvalho França).
Rita representa a visão da mulata predominante na época. Arrastando pelas curvas do corpo dançante o veneno da sedução, envolveu Jerônimo – amarrando-o à sua lasciva influência, cuja libidinosidade destitui-lhe todas as virtudes. Ela surge convertida no fator de corrosão do caráter autóctone do português, transculturando-o.
Rita, com o cheiro da terra impregnado à sua pele, submete o estrangeiro, colocando-o aos seus pés. Todavia, mulata, portanto híbrida, já levava em si os traços identitários que a tornavam embebida da torpe malandragem que constituía a máscara representativa do brasileiro.
- Aquela não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo, vai tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha! (op. cit., p.48)
Na análise desta segunda personagem, vale ressaltar seu estereótipo de mulher baiana, sensualidade e rebeldia, características presentes em toda obra sempre que se referi a esta personagem.
Contrária ao retrato da mulher idealizada romântica, Rita é a mulher independente e rebelde, que diferente de Bertoleza, oprime e seduz os homens, desmoronando a idéia de modelo patriarcal da sociedade em que a mulher era apenas objeto, Rita Baiana criticando até mesmo a instituição casamento vai contra toda uma ordem estabelecida.
“-Casar? Protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Pra quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu!”
Essa visão que o autor tem de Rita Baiana, segue a visão da sociedade da época.

A FUNÇÃO DA MULHER NO SISTEMA DE TRANSFORMAÇÃO:

AS MULATAS DE DI CAVALCANTI
Como vimos anteriormente à mulher participa do regime de trocas, ela dá e recebe. A posição da mulher na estética naturalista, no entanto, é bem diversa daquela na estética romântica. Descrita mais objetivamente, enraizada na realidade, ela surge sem as idealizações e falseamentos. Nessa narrativa de Azevedo, a mulher é descrita principalmente como fêmea, que se acasala com o macho por interesses físicos e materiais.
São elas:
a) a mulher-objeto que é trocada como nas sociedades primitivas;
b) a mulher sujeito-objeto que aceita as regras do sistema dando tanto quanto recebe;
c) a mulher-sujeito que regula os regimes de troca capaz de impor condições e
A prostituição francesa, fator incomum à cultura nativa, transcorre nas linhas do livro, pela força sedutora de Léonie, tornando-se também um imperativo de exploração a meninas como a doce Pombinha e outras possíveis presas “chocadas” sob o corpo pesado do cortiço de João Romão. A prática da prostituição foi herança do colonizador – servir-se, sexualmente, das índias resolveria a difícil tarefa de colonizar, vencendo as adversidades climáticas, sem a presença da mulher branca.
Ambos os comportamentos são explicados pela influencia das idéias vigente na época, especialmente do “ambientalismo de Taine”, que acredita firmemente no determinismo acreditando que o meio, raça e momento histórico determinam o ser - humano tal teoria explicaria os comportamentos das personagens aqui estudadas, O cortiço, por se tratar de um lugar onde não há condições descentes de sobrevivência, determinaria o “ser” de Rita Baiana, Bertoleza, Pombinha e Léonie.
HOMOSSEXUALIDADE RETRARADA EM O CORTIÇO

A homossexualidade feminina retratada em O Cortiço de Aluísio de Azevedo (Pombinha e Léonie) visa identificar acerca das condições da mulher lésbica no naturalismo: é visto como doentio, anormal, patológico. Assim as personagens apresentam desvios. O naturalismo é material, é do corpo não humano. Retratando a realidade de forma objetiva, descrevendo grupos marginalizados. A exclusão do homossexual é bastante antiga, entretanto o naturalismo acrescenta elementos que mostram essa predileção em retratar mazelas e chagas da sociedade.
A mulher no naturalismo era tratada como objeto sexual, e tudo sobre os desvios na sexualidade estavam relacionados a fatores internos e externos. Portanto, Léonie seria definida como mulher pervertida, impura, aquela que tem que ser banida, pois é um "mal" que assola a sociedade e pode contaminar os que conviverem com ela.
Pombinha é fraca, nervosa, doente, enfermiça, doente, loira, muito pálida, sua sensualidade associada a doses de inocência, pureza, boa família, asseada.
A personagem tem a figura da mãe, que a protege e a figura do pai, um homem que fracassa e comete suicídio. Talvez essa figura do pai seja substituída pelas carícias e mimos de sua madrinha Léonie, que perverteu Pombinha desviando-a para uma vida de prostituição, sexo e embriagues. Pombinha toma Léonie como espelho, modelo de vida a ser seguido.
“Arrancou-lhe até a última vestimenta e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empogar-lhe os lábios, o róseo do peito (...), deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal (...).”
“Espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por doida de luxuria, irracional, feroz, reluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando. E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas e esmagavava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos ombros (...) devorou-a num abraço (...) ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos.“
A ruptura acontece quando Pombinha se separa do seu marido, após adultério. Atirou-se às coisas mundanas e foi morar com Léonie, mais sustentava a mãe com o dinheiro da prostituição, a qual se tornou perita e com sua sagacidade, conquistava todos os homens.
Pombinha tinha uma afilhada e a tratava com a mesma simpatia que fora tratada por Léonie. "A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher".

SÃO ROMÃO VERSUS CABEÇA-DE-GATO:
Na medida em que Romão vai evoluindo econômica e socialmente, “São Romão” sofre um processo de modificações também qualitativas até chegar à Av. São Romão. Alinha de ascensão do cortiço é a mesma de seu proprietário que, na verdade, funciona como uma metonímia de seu conjunto.
Enquanto isso: o “Cabeça-de-Gato” à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiros de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma cama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão”.

O DESFECHO DO ROMANCE:
Delatada por João Romão, os antigos donos de Bertoleza diligenciam para capturar a escrava fugida. Procurada pelos policiais, a negra se suicida.
Observe o exagero da cena, e a ironia do desfecho.
"A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar. Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto, e entes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lodo. E depois emborcou para a frente, rungindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue. João Romão fugira até o canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos. Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito."

Estudo de Cidade de Deus como evolução de O Cortiço:
O presente trabalho tem como propósito relacionar semelhanças e diferenças dentro de um contexto histórico-literário entre O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e Cidade de Deus, de Paulo Lins.
O polêmico livro de Lins faz parte da nova literatura brasileira que enche as prateleiras das livrarias. O tema mais abordado atualmente é a violência urbana, que no Brasil, e notavelmente no Rio de Janeiro, atinge índices alarmantes. O domínio do tráfico de drogas nas favelas da cidade contribui para a manutenção do caos urbano. E essa evolução do processo de favelização nacional é mais antiga do que se imagina, se repararmos com atenção o livro de Paulo Lins, de 1997, ou até mesmo o filme de Fernando Meirelles lançado em 2002, confirmaremos a teoria evolucionista de Darwin e o determinismo de Taine. Tendo como base para esse desenvolvimento o livro O Cortiço, publicado em 1890.
O chocante filme de Meirelles, que lhe rendeu quatro indicações ao Oscar, nada mais é que o processo evolutivo já denunciado por Azevedo. Cobiça, inveja, ira e luxúria são temas de ambas as obras e pelos quais personagens intensos são capazes de tudo, inclusive matar.
O crescimento urbano desordenado é indicado no próprio O Cortiço. Primeiramente, a estalagem, a venda, a travessa até a Avenida São Romão. Cidade de Deus é a evolução de O Cortiço onde existe um número maior de personagens intensos, e estes exoplodem numa violência sem fim. Trazendo medo a todas as camadas da sociedade.
Segundo a teoria de Charles Darwin (1809-1882) a sobrevivência dos organismos depende de sua adaptação ao meio. Serão selecionados para aquele ambiente, portanto, os organismos que se adaptarem melhor. Outro fator destacado por Darwin é a luta pela sobrevivência entre os descendentes, pois embora nascam muitos indivíduos poucos atingem a maturidade. Dentro do contexto do presente trabalho o número de personagens que perdem a vida cedo é ainda maior. Cidade de Deus mostra muito bem este aspecto, jovens iniciam sua vida criminosa cada vez mais cedo, assim devido a constante guerra entre traficantes faz dessas crianças, jovens cadáveres.
Os indivíduos são determinados através da seleção natural mantendo ou melhorando a adaptaçao destes ao meio. Podemos, no entanto, considerar esta teoria da seguinte forma que Cidade de Deus é descendente de O Cortiço. Fortaleceu-se devido a concentração de caracteres tais como violência e o uso constante de drogas, seja álcool (O Cortiço) seja cocaína (Cidade de Deus). Assim podemos constatar que a seleção natural teorizada por Darwin transformou-se em seleção criminal. Ou seja, os portadores de variações desfavoráveis, ou considerados frágeis, são eliminados pelos portadores de variações favoráveis, ou fortes. Dessa forma, na lei da seleção criminal a força física nem sempre vence na guerra do crime, o mais forte é o mais esperto, aquele que se impõe sobre os outros, amendrontando a comunidade. O melhor termo para definir este aspecto é falha a fala. Outra semelhança encontrada nas obras é a filosofia determinista de Taine. Partindo do princípio de que todo evento tem causa e que, ocorrendo esta causa, o evento acontece invariavelmente. Encontramos tanto em O Cortiço quanto em Cidade de Deus muitos personagens corrompidos pelo meio. Outros, porém poucos, levaram-se pelo livre-arbítrio como é o caso de Busca-Pé em Cidade de Deus e Piedade em O Cortiço . Piedade luta bravamente contra as influências do cortiço, inicialmente consegue, mantém-se ilesa aos vícios e prazeres mundanos.
A mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta anos, boa estatura, carne ampla e rija, cabelos fortes de um castanho filvo, dentes pouco alvos, mas sólidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela boca numa simpática expressão de honestidade simples e natural.
Mas Piedade é vencida pela força do meio, e quando Jerônimo vai embora com Rita Baiana tenta driblar a dor da perda do marido e a falta de dinheiro, somado ás más-influências. Assim a portuguesa torna-se boa de trago e conhece os prazeres da embriaguez.
Piedade de Jesus , sem se conformar com a ausência do marido, chorava o seu abandono e ia também agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança, a quem nem as lágrimas bastavam para adoçar as agruras. “(...) Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabeça, zoada nos ouvidos e o estômago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de parati. Ela aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte repetiu a dose; deu-se bem com a perturbação em que a punha o álcool, esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofinações da sua vida; e, gole a gole, habituara-se a beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os pesares.”
Ao contrário, o aspirante a fotógrafo Busca-Pé escapa do círculo vicioso da contravenção, mostrando uma alternativa virtuosa à guerra que o cerca desde criança.É o garoto vitorioso que não foi corrompido pelo meio, escapando do determinismo e da perspectiva do desalento. Por isso sua vitória parece tão gloriosa, tão digna de admiração.
Buscapé segue regras ditadas por sua mãe, desde criança, para manté-lo longe do mundo do crime. Mas também impõe-se quando o assunto é seu futuro.
Um dia ganharia um prêmio. A voz de sua mãe chicoteou em sua mente:
- Esse negócio de fotografia é pra quem já tem dinheiro! Você tem é que entrar pra Aeronáutica....Marinha, até mesmo pro Exército, pra ter um futuro garantido. Militar é que tá com dinheiro! Não sei o que você tem na cabeça, não!
O menino sonhador trabalhou duro em supermecado na tentiva de conseguir dinheiro para comprar uma câmera fotográfica. Consegue juntar dinheiro, mas não a manutenção de seu emprego, quando moleques de sua comunidade assaltam o mercado Busca-Pé é demitido.
Outra semelhança entre Busca-Pé e Piedade é o gosto por se entorpecer. O garoto não se rende ao vício como a mulher, embora gostasse de fumar um baseado com seus amigos e sempre dizia aos careta que a maconha era a luz de sua vida: dava sede, fome e sono! As obras como um todo também são parecidas, pois a personagem principal é o próprio conjunto habitacional, seja o cortiço seja a favela ambos são dotados de vida própria. Esse processo faz com que o meio pobre e promíscuo exerça sobre seus habitantes grande poder determinista. É formado um painel social em que são apresentados os personagens típicos de uma dada realidade urbana, valendo o coletivismo sobre o individual. Este aspecto levanto por Affonso Romano de Sant´Ana não se encaixa na personagem de João Romão, pois este é um ambicioso nato capaz de tudo para atingir seu objetivo de enriquecer; não leva em conta o outro e tira proveita até de sua companheira e cúmplice Bertoleza.
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de um pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quintanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe.
João Romão é possuidor de um desejo irracional de enriquecer. Em seu projeto de vida apenas uma palavra faz parte: dinheiro. Dinheiro para aumentar a estalagem, comprar a pedreira, aumentar o cortiço para com isso ganhar mais dinheiro e comprar títulos de nobreza num duelo doentio com seu vizinho Miranda. Inescrupuloso não hesita em adulterar mercadorias ou até mesmo a carta de alforria de Bertoleza,e ainda, apoderar-se de coisas alheias. É um explorador implacável com todos que o cercam, frequentadores da estalagem, moradores do cortiço e funcionários. Enquanto moradores do cortiço enfrentam com dificuldade a rigidez das barreiras, tentando viver com dignidade, João Romão mantém-se soberano, superando o esquema determinista. Ao invés da degeneração há ascenção social e financeira.
João Romão conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito. Foi abaixo aquele grosso e velho muro da frente com o seu largo portão de cocheira, e a entrada da estalagem era agora dez braças mais para dentro, tendo entre ela e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de cimento, imitando pedra. Fora-se a pitoresca lanterna de vidros vermelhos; foram-se as iscas de fígado e as sardinhas preparadas ali mesmo à porta da venda sobre as brasas; e na tabuleta nova, muito maior que a primitiva, em vez de 'Estalagem de São Romão' lia-se em letras caprichosas: 'Avenida São Romão’.
A mais complexa personagem de Azevedo é Jerônimo. Português de hábitos simples, saudoso de sua pátria-mãe, trabalhador que sofre nitidamente a influência do meio degenerativo em que vive. Sua perdição dá-se pela paixão arrebatadora que nutre por Rita Baiana. Seu sucessor no processo histórico é Mané Galinha. Também como o português é trabalhador, trocador de ônibus,e avesso às seduções proporcionadas pelo mundo do tráfico. Isso até a entrada de sua noiva em cena, mais um vez o homem é levado a perdição por causa da mulher. Mas dessa vez a mulher é passiva, não participa ativamente na contravenção do noivo. Ela é estuprada por Zé Pequeno que após consumar o ato pensou em matá-lo, mas se o matasse ele iria sofrer pouco, e sofrimento pouco é bobagem.
Pode-se, então comparar Jerônimo com Mané Galinha. Ambos tornam-se agressivos, sedentos por vingança, envoltos em guerras particulares com objetivo único de limar os opositores. Jerônimo concentra sua raiva e com ajuda de amigos arma uma cilada para Firmo, remetendo-nos ao duelo entre Zé Pequeno e Mané Galinha. Galinha recebe ajuda do traficante Sandro Cenoura, a guerra particular de um é a guerra pela manutenção da freguesia do pó do outro. O vencedor será aquele que conseguir a boca-de-fumo do outro, aumentando,assim, sua clientela. Jerônimo e Firmo lutam pelo amor de Rita Baiana; por amor e por sede de vingança Galinha alia-se a Cenoura. E assume a responsabilidade de eliminar Zé Pequeno. Temos então um painel complexo e inter-relacionado no qual personagens se reencontram e se refazem num meio comum, em atitudes e objetivos comuns.
Zé Pequeno luta com armas e cocaína para atingir seus objetivos, o principal é conseguir a boca-de-fumo de Cenoura, pois as outras já havia dominado. Nesse delírio de ser o único traficante da Cidade de Deus, Pequeno mostra-nos uma incrível semelhança com João Romão. Falta de escrúpulos somado à ganância e, à uma arma na mão, faz de Pequeno, o maior traficante da Cidade de Deus, respeitado pelos outros e temido por inocentes como Busca-Pé. Tal qual Romão adultera a mercadoria e explora pequenos criminosos, como assaltantes e aviõezinhos. Desde de criança mostra-se sangue-frio, principalmente, após a chacina no motel. Devido aos crimes adquire uma visibilidade no meio em que vive digna de um pop star.
A luta por espaço no crime organizado reflete na guerra constante que o Rio de Janeiro assiste entre suas favelas guerra essa semelhante a Cabeças-de-Gato versus Carapicus. Cidade de Deus não mostra este lado, mas é uma constante nos noticiários.
Ao término da leitura dos dois livros nota-se que são secas e diretas as imagens que conduzem o leitor através das ações rápidas e diálogos curtos por pocesso histórico evolutivo e degradante. É a confirmação do descaso público, da construção da pobreza por parte dos governantes, de organização de um modo de vida à margem da sociedade; predominando o crime, como se fosse o mais lógico caminho da vida. Neste mundo do cada um por si, da luta pela sobrevivência não tem espaço para o lirismo. Também não há auto-estima, julgamentos morais e nem sequer heróis. Não existem escolhas, nem dicotomias bem/mal, trabalho/crime, mocinhos/bandidos.
Em uma das epígrafes de O Cortiço, João Francisco Lisboa diz que é necessário exigir censura para os vícios e crimes dentro da sociedade. Como não houve censura, os crimes e os vícios potencializaram atingindo índices caóticos. A sociedade da época de Cidade de Deus é o resultado da política ineficiente da época de O Cortiço. Ambas as obras são relatos que passam da pureza ao desvituamento. Cidade de Deus segue a linha do Realismo relatando as mazelas sociais, carregados de tensão sexual condizntes com o sentido de violência circundante.
Da fecundação do Cortiço nasceu Cidade de Deus.

Um comentário:

Anônimo disse...

esse assunto é demais!!!1 adorei esse documento foi maravilhoso para o meu trabalho!!!!!!!!!!!