terça-feira, 28 de setembro de 2010

O SHOW DE TRUMAN (1998)

Truman ou True Man; Christof ou “Cristo - em off”;
alegoria do sonho americano ou a cidade simulacro”.


“A história de um homem, Truman Burbank, que vive, desde o seu nascimento, em um mundo falso, onde todos são atores, a cidade é apenas um grande cenário e cujo cotidiano é filmado e transmitido ao vivo pela TV minuto a minuto, sem que ele saiba. Um filme polêmico que aborda questões atuais como a perda da privacidade devido à vigilância cada vez mais presente em nossas vidas, a idéia de que o mundo se transformou em um simulacro de si mesmo e de uma sociedade prisioneira de comportamentos codificados pela massificação da tecnologia, onde a vida de verdade está na TV, em incontáveis “reality shows”. (FGV-Direito)


I – O FILME:

FICHA TÉCNICA:

• título original:The Truman Show
• gênero:Drama
• duração:01 hs 42 min
• ano de lançamento:1998
• site oficial:http://www.truman-show.com
• estúdio:Paramount Pictures
• distribuidora:Paramount Pictures / UIP
• direção: Peter Weir
• roteiro:Andrew Niccol
• produção:Edward S. Feldman, Andrew Niccol, Scott Rudin e Adam Schroeder
• música:Philip Glass e Burkhart von Dallwitz
• fotografia:Peter Biziou
• direção de arte:Richard L. Johnson
• figurino:Marilyn Matthews
• edição:William M. Anderson e Lee Smith
efeitos especiais:The Computer Film Company / Cinesite Hollywood / EDS
Digital Studios

Dirigido por PETER WEIR, “O Show de Truman” ou ”O show da vida”, com aproximadamente 103 minutos de duração e roteiro de Andrew Niccol, foi lançado em 1998 nos Estados Unidos, pela Paramount Pictures.


II – ESPAÇO E TEMPO:


TRUMAN BURBANK (Jim Carrey) vive na bucólica cidadezinha litorânea de SeaHeaven. É interessante observarmos que a denominação da cidade nos remete a um Paraíso terrestre, “o locus amoenus”, onde tudo gera em perfeita harmonia, equilíbrio e tranquilidade. No entanto, ocorre uma contradição irônica; pois, é um lugar que não apresenta perigos e não acontece nada de extraordinário, no entanto, o protagonista do filme é um corretor de seguros.
SeaHeaven na realidade é a pacata cidade Seaside, localizada no norte da Flórida, estado americano dos mais conservadores. Foi ali, mesmo na Flórida que Walt Disney criou seu mundo de sonhos, uma cidade inteira de diversão – a Walt Disney World. Dentro da Walt Disney World está a cidade Celebration, uma cidade real, construída para os funcionários da Disney Company, que muito se assemelha à SeaHeaven de “O Show de Truman”; portanto, o filme não está tão distante da realidade.
O filme retrata a alegoria do sonho americano (o estilo de vida nos Estados Unidos): Truman está bem empregado; tem um casamento aparentemente feliz com a enfermeira Meryl; possui amigos “fiéis” e convive com vizinhos que gostam muito dele.
A única coisa que difere TRUMAN dos outros milhões de norte-americanos de classe média, é que ele é a única coisa real, até os pedestres são atores contratados para dar-lhe a ilusão de falsa realidade e a cidade não passa de um imenso cenário, o maior e mais tecnológico já construído pelos homens.

O tempo é cronológico e começa a partir do nascimento de Truman até o protagonista completar seus trinta anos de idade. Sua vida é televisionada 24 horas por dia, através de 5.000 câmeras existentes na cidade, controladas por Christof e sua equipe que ficam escondidos atrás da bela lua que permeia o céu artificial da noite de SeaHeaven e apresentada aos telespectadores em 10.909 capítulos.
Truman leva alegria e esperanças para milhões de telespectadores em todo o mundo, sem saber que é a estrela de um “reality show”, mercadoria e vítima de um sistema dominador que procura atender seus interesses, impondo um modelo social permeado por uma falsa e ilusória ideologia.
Essa ideia absurda de uma telenovela estar no ar intermitentemente por 30 anos mostrando a vida de uma pessoa normal, não é tão longínqua da realidade da mídia do final do século passado e aí está seu sombrio e premonitório valor. Em tempos de programas que levam a desgraça do cidadão comum às casas de milhares de pessoas, não é difícil imaginar que quando este modelo cansar, levando farsas orquestradas a palcos de TV, só mesmo a vida de uma pessoa real pode saciar os desejos voyerísticos dos telespectadores cada vez mais céticos. Fundamentando-se na teoria crítica, é importante salientar a existência de duas perspectivas abordadas no filme: a do mundo conhecido por TRUMAN e a dos telespectadores do grande show. Decisões e atitudes são impostas e, as pessoas falsas e os telespectadores do “reality show” manifestam ira em torno da manipulação do poder.
Portanto, em um futuro não muito distante, uma telenovela é protagonizada por uma personagem real.


III – PERSONAGENS:



Assim, tudo é cenário no "Show de Truman": a cidade, as casas, os cidadãos da cidade, que são atores, os pais de Truman, os amigos de Truman, a mulher de Truman; neste mundo perfeito e artificial só o próprio Truman não sabe que vive uma ficção; vivendo sua vida de mentira, dentro de uma verdade fabricada para ele e, completamente alheio a esta conspiração - o american way of life elevado ao state of art. Sua vida é acompanhada por milhões de telespectadores que assistem estupefatos diariamente à simulação de uma vida ao vivo.
Durante o filme, observamos quatro tipos de personagens:

1. Personagens que não tem qualquer consciência do que fazem (Meryl, a mulher de TRUMAN);


2. Personagens que faz para cumprir ordens (Marlon, amigo);
3. Personagens que tentam impedir que isso continue a acontecer (Sylvia) e
4. Personagens que tem consciência plena e faz com convicção (Christof).



Neste mundo colorido, onde o azul do céu é cenário para personagens como o cachorro Pluto, e onde pessoas, durante uma simples conversa, fazem merchandinsing de produtos alimentícios, utilidades domésticas, planos de saúde e outros, Truman (ou True Man, um Homem de Verdade) não percebe que seu arbítrio livre não é e, quando o faz, a evasão é monitorada por Christof (o criador do programa, o diretor, ou “Cristo”).
O programa é cria da indústria cultural, produzido do alto pelas instituições sociais dominantes, que determinam o processo de consumo, instaurando na audiência uma reação automática e irreflexiva perante àquilo a ser consumido.
Esse fato pode ser observado nas cenas em que aparecem as garçonetes, os policiais, as duas senhoras e o rapaz da banheira, pois essas pessoas estão constantemente assistindo ao show, inclusive em seus locais de trabalho e no correr da noite, não demonstrando preocupação com o fato de TRUMAN viver todos os dez mil novecentos e nove capítulos aprisionado para entretê-los e vender-lhes os variados gêneros de produtos circulantes no sistema de livre-mercado. Às pessoas não são capazes de tomar decisões sem a intervenção de agentes externos e passam a aderir acriticamente aos valores impostos e dominantes, difundidos pelos meios.
TRUMAN, por sua vez, é a personificação dessas pessoas. Vive em um mundo controlado, onde produtores se conjugam harmonicamente, determinando os padrões de consumo, tendo como objetivos principais à venda de mercadorias e o lucro acima de tudo, não importando a qualidade do produto, nem se estão sendo dignos com a humanidade e a sociedade. Pois, não importa como TRUMAN se sinta, ele faz parte desse modelo forçado e assim deverá permanecer. Eis aqui um ponto fundamental do filme, mostrando algumas das fragilidades da teoria crítica.
No desenrolar do filme, o diretor vai deixando transparecer um contato feito, em capítulos anteriores, entre TRUMAN e Sylvia. Ela tentou alertá-lo sobre a condição vivida por ele e por isto foi expulsa. Desde então, TRUMAN começa a amadurecer um desejo de encontrá-la, de viajar para conhecer outros lugares. Isto mostra que os indivíduos não são totalmente desprovidos de autonomia, consciência e capacidade de julgamento, como previa a teoria crítica, nem que a mentalidade das massas é algo imutável.


IV – TEMÁTICA:


“O direito à privacidade e a mídia no século XXI”

Uma tese sustentada pelo filme seria como a televisão invade inteiramente a subjetividade, confunde público e privado, aprisiona os sujeitos numa vida alienada, ditada pelos valores do mercado, onde a felicidade está equacionada à posse de bens de consumo e a própria identidade pessoal se esfuma frente às identidades por ela fornecida, especialmente, aquelas veiculadas pela publicidade, que forjam imagens de masculinidade ou feminilidade, de sucesso e de triunfo.
As ideias de Truman são habilmente construídas através de propagandas. Um ideário necessário para a manutenção do Estado é incutido em sua mente através dos meios de comunicação e das pessoas ao seu redor, simbolizando dessa forma, uma sátira mordaz do americano típico comum, modelo fabricado, adotado por milhares numa sociedade pré-fabricada e prática.


“A psicanálise e a constituição do sujeito humano”

A forma como a psicanálise compreende a constituição do sujeito, baseada em identificações com os objetos primários (pai, mãe) de certa forma afasta a mídia como um fator estrutural construtivo no ser. Outra leitura que a metáfora trazida pelo filme permite, seria uma leitura psicanalítica: a constituição do sujeito humano.
Tausk, discípulo de Freud descreveu nos pacientes esquizofrênicos algo que, ele chamou de aparelho de influência. Estes pacientes sentiam que sua vida era observada cuidadosamente, que seus pensamentos eram comentados, que seu interior era vasculhado, assim como o espaço que eles habitavam era supervisado por forças estranhas e alheias a eles. A psicanálise postula que durante a constituição do sujeito psíquico os outros (a começar pelos pais) se instalam em seu interior como palavra e pensamento, como cuidados que o sujeito realiza consigo mesmo, como uma série de aspectos normativos e instrumentais que passam a constituir seu próprio ser.
Tudo isso que se origina no exterior, passa a ser ego sintônico, ou seja, algo que o sujeito sente em sintonia com seu ser e cuja origem não pode mais ser traçada até suas origens externas. Perde-se o elo que o une ao real.
Quando isso acontece, não se teria realizado uma adequada simbolização desse passado constitutivo, e por isso ele retorna como real. Através desse aparelho de influência o sujeito encontra uma forma de perpetuar esse passado de influências benéficas (ou não) e a proteção dos pais. Isto seria conflitante com os desejos de crescer e de abrir-se, por identificação com os pais, a experiências exogâmicas, que seria o que caracteriza a normalidade. Em outras palavras, a história de Truman mostra a passagem entre a alienação no desejo do Outro e a assunção do próprio desejo, o estabelecimento da própria subjetividade.
A relação entre Truman e a produção do show na televisão onipresente e onipotente, que o controla em tudo com suas cinco mil câmaras de filmar, impondo-lhe seu desejo, impedindo-lhe qualquer autonomia e escolha, seria uma possível representação da relação estabelecida por uma mãe narcísica que toma seu filho como prolongação dela própria para realizar seus desejos onipotentes.
Vemos no filme como todas as tentativas de autonomia apresentadas por Truman são imediatamente rechaçadas, invalidadas, desautorizadas, desestimuladas. Posteriormente ele é impedido e punido por tais tentativas. Fobias e sentimentos de culpa lhe são induzidas com este intuito. As imagens catastróficas da companhia de turismo desestimulam qualquer desejo de sair, de ir para longe; o medo através do rádio e da televisão e, até por meio de cartazes, alertando para o perigo de doenças, ataques terroristas e desastres naturais.
O que falamos até aqui, caracterizariam uma psicose. Uma relação narcísica, não castrada, fundida com o objeto primário, uma impossibilidade de assumir o próprio desejo, a própria subjetividade.
Vemos, entretanto, em TRUMAN, como este sistema narcísico começa a ruir na hora em que, Truman se interessa efetivamente, espontaneamente por uma mulher. É a emergência de seu próprio desejo, não mais aquele decorrente da manipulação externa. Truman estabelece sua relação exogêmica pela escolha da mulher estranha ao meio endogâmico, cuja imagem vai organizando aos poucos, numa colagem de lembranças e afetos, até constituir uma fonte de desejo amoroso. É interessante notar como o acesso a essa mulher é severamente reprimido, como vemos no encontro na praia, quando ela é sumariamente levada por homens.
A fala final de Christof, o criador do programa, tentando fazer Truman ficar no "útero", assegurando-lhe que a vida lá fora é também cheia de mentiras e enganos, e que aqui ele está mais protegido é a tentativa final e frustrada feita pela "mãe" para impedir que o "filho" possa fazer suas descobertas boas e más que o "mundo externo" inevitavelmente lhe trará.
Neste sentido, TRUMAN seria uma metáfora tanto da situação inicial da constituição do sujeito, como também da sua crise maior, aquela que se dá na adolescência.

“O livre-arbítrio”


O ser vigiado enfrenta o “diálogo” com o seu criador, Christof, que tenta convencê-lo a permanecer na cidade, usufruir Seahaven que é um “modelo de mundo”.
Christof com sua voz como se brotasse do sol entre as nuvens, numa clara associação com as aparições kitsch de Deus nas sagas religiosas hollywoodianas (seu próprio nome induz a isso, é o “Cristo - em off”), declama um discurso típico da mídia contemporânea, declarando que o seu real é mais perfeito que o real desconhecido do mundo fora do estúdio: existem as mesmas dores, os mesmos desapontamentos, mas tudo é pior porque fora de controle, não havendo um ideal pleno e monitorador dos acasos.
Mesmo assim, Truman decide. Adentra o escuro oferecido por uma porta que o liberta de um mundo previsível.
Truman prefere o mundo com suas relações imprevisíveis e, num ato de representação, sorri, curva-se ao grande espectador “Deus”, e abandona o paraíso artificial, o que nos parece uma associação ao Gênesis, onde o Éden é preterido face à curiosidade de Adão: a felicidade gerida por uma força superior é rompida por uma esfera desejante incontornável na figura humana que, mesmo lamentando a queda, parte para sua própria aventura.
A aposta é, enfim, no fantasma da liberdade, na quimera do desejo e, se pode diagnosticar o poder da mídia na sociedade contemporânea através de uma fábula exemplar, pois o filme aponta para a possibilidade da interferência, da interseção do singular no plural avesso ao globalismo de ordens dominantes o que, afinal, é incontestável: em todas as sociedades de corte totalitário, subsistiram sempre ideias e comportamentos de resistência, e todas elas acabaram por ruir. A Nova Ordem Mundial, ciente disso, caminha lado a lado à ilusão de liberdade, para destruí-la como conceito, sobrepondo o dístico: liberdade é consumo. Neste sentido caminha a indústria cultural, avessa à cidadania e às relações sociais sem pressões midiáticas. No sentido inverso, a arte disposta a não esconder sob simulacros a riqueza só inerente a um mundo imperfeito.
A sociedade ao mesmo tempo em que se aprisiona, assiste de suas celas/cidadelas a libertação da personagem. Torce por ela. Mas, se reforça em seu aprisionamento, consumindo o produto recomendado pelo merchandising do reality show. Assim, mal liberto Truman de seu espaço-simulacro, a audiência busca saber o que está passando em outro canal.
Truman preferiu sair da TV e entrar no mundo real. Essa opção do protagonista leva-nos a refletir sobre o conhecido “Mito da Caverna”, onde as coisas sensíveis são apenas “sombras imperfeitas das idéias preexistentes”.
Para melhor sintetizar as ideias de Platão; recorremos ao livro VII de “A República”, onde seu pensamento é ilustrado pelo “Mito da Caverna”.
Platão imagina uma caverna onde estão acorrentados os homens desde a infância, de tal forma que, não podendo se voltar para a entrada, apenas enxergam o fundo da caverna. Aí são projetadas as sombras das coisas que passam às suas costas, onde há uma fogueira.
Se um desses homens conseguisse se soltar das correntes para contemplar à luz do dia, “os verdadeiros objetos”, quando regressasse, relatando o que viu aos seus antigos companheiros, esses, o tomariam por louco, não acreditando em suas palavras.
A análise do mito nos remete ao “O Show de Truman” e pode ser feita pelo menos sob dois pontos de vista: o epistemológico (relativo ao conhecimento) e o político (relativo ao poder).
Segundo a dimensão epistemológica, o mito da caverna é uma alegoria a respeito das duas principais formas de conhecimento: na teoria das idéias. Platão distingue o “mundo sensível”, dos fenômenos, e o mundo “inteligível”, das idéias.
O mundo sensível, acessível aos sentidos, é o mundo da multiplicidade, do movimento, e é ilusório: pura sombra do verdadeiro mundo. Acima do ilusório mundo sensível, há o mundo das ideias gerais, das essências imutáveis que o homem atinge pela contemplação e pela depuração dos enganos dos sentidos.
Sendo as ideias a única verdade, o mundo dos fenômenos só existe na medida em que participa do mundo das ideias, do qual é apenas sombra ou cópia.
Voltando ao Mito da Caverna: o filósofo (aquele que se libertou das correntes), ao contemplar a verdadeira realidade e ter passado da “opinião” (doxa) à “ciência” (episteme), deve retornar ao meio dos homens para orientá-los.
Truman ignora o mundo das ilusões e não imagina que pode haver outra realidade, onde o conhecimento exige maior esforço. Assim, o mundo das ilusões é confortável, mas não é confiável.


“A dominação e o ser dominado”

Cristhof, principal responsável pela criação do mundo de Truman, foi perguntado, em uma entrevista para a televisão externa, o porquê de Truman nunca ter chegado perto de sair, de descobrir a natureza real do seu mundo.
Ele respondeu que as pessoas simplesmente aceitam a realidade do mundo no qual estão presentes, mas que se TRUMAN estivesse realmente determinado a descobrir a verdade não haveria como detê-lo. Aconteceu que Truman não estava mais aceitando essa “realidade de mundo” e ao buscar a “liberdade de consciência” enfrenta seu medo do mar e começa a velejar em direção à Sylvia, às ilhas Fiji, à emancipação, à liberdade! Sobrevive a uma imensa tempestade propositalmente provocada e chega, enfim, ao portão de saída. Após um rápido diálogo com Cristhof, que tentava persuadi-lo pela última vez.



Truman executa sua saudação padrão (de muito sucesso perante o público) – “caso não os veja de novo, tenham uma boa tarde e uma boa noite” acompanhada de uma enorme reverência e atravessa a porta levando ao delírio milhões de telespectadores que, de certa forma, também estavam se libertando do consumo desenfreado e irreflexivo.

De forma similar a Truman, o exercício do poder e da dominação sobre as pessoas, faz-se circular por canais cada vez mais sutis, captura os indivíduos, sua ação cotidiana, seus corpos. Onipresente nos objetos construídos, olhares vigilantes imiscuem-se nas mais íntimas formas de relações sociais.
A partir do olho imperceptível de lentes e chips, a sociedade é constantemente vigiada. Tecnologias sem fio, bina, celular, câmeras, células óticas, sensores eletrônicos de digitais, da íris, rastreadores, satélites significam tanto novas liberdades como nova escravidão. Nas ruas, lojas, supermercados, bancos, caixas eletrônicos, portarias, elevadores, deixou de ser constrangedora a presença disseminada do aviso simpático e ao mesmo tempo ameaçador: Sorria. Você está sendo filmado!
Uma eterna vigilância paira sobre edificações, equipamentos, veículos em movimento, e não só serve à segurança como ao controle.


“A cidade simulacro”

A cidade é aprisionada, intermediada pela tela. Tecnologias de informação e comunicação instalam o presente permanente (sem memória coletiva), o tempo real na irrealidade do espaço virtual. O espaço público das relações interpessoais cede lugar ao espaço privatizado, mediado por máquinas. O diálogo passa a ser teclado ou monitorado: instaura-se uma conversação muda, ou, se sonora, sem alma, sem tato, sem o calor da presença. A abertura planetária cria o isolamento dos indivíduos, cativos diante da tela, num processo de comunicação solitária.
A cidade se super expõe. Entrega-se à invasão imperceptível do interior dos espaços públicos e privados, e a mutação dos papéis. A instantaneidade dos meios de comunicação permite uma sucessão de eventos espetacularizados, banalizados, expostos a uma sociedade que a tudo vê, entretanto como espectadora e irresponsabilizada. O usuário, em permanentes deslocamentos, e não o habitante, marca a cidade. A arquitetura tem de adaptar-se aos interlocutores em trânsito, a transeuntes desconhecidos que impõem o risco. Como suporte, apóia-se na tecnologia da invasão: “equipada com objetos de controle, a porta da cidade deixa de ser o gate, o arco do triunfo, e passa a se constituir de ‘sistemas de audiência eletrônicos’, ‘pórticos magnéticos’, que interceptam o suspeito no trajeto”.
Bancos de dados sucedem aos portais e as redes não se inscrevem no tecido construído, mas na interface homem/máquina.
Concentração e objetos construídos dão materialidade e deixam perpassar os olhos do poder. Verdadeiros cenários que aprisionam e sintetizam a realidade: como revela Marlon, “nada do que se vê no Show (de Truman) é falso; é meramente controlado.”
Na cidade tornada palco, o citadino se destitui da capacidade criadora e transformadora, assumindo o perfil de consumidor do produto urbanismo, desvinculando-se de seu papel político enquanto agente da produção do espaço e da cidadania. Um citadino-objeto, associado à imagem da cidade sujeito, como um filho obediente, no colo de uma mãe dedicada.
Essa cidade, concebida para que tudo funcione equilibradamente, é apenas um simulacro no qual todos estão felizes, integrados, adaptados, cumprindo seus papéis determinados, sem imprevistos ou sobressaltos.
Resgatando de Baudrillard as ideias de “simulacro” e “hiper-realidade”, discute a recriação das cidades, a partir de uma “cópia exata de um original que já não existe – ou talvez nunca tenha existido: ele se adianta ao processo mais simples da simulação para criar farsas e fantasias ‘reais’ que funcionam não apenas como imagens e ícones, mas como parte de nossa realidade material”. A “cidade simulacro” se faz marcar pelo “crescente poder político e social das simulações do real como substitutos lógicos e comportamentais para eventos e condições materiais reais” implicando “uma mudança radical no imaginário urbano, nas maneiras pelas quais relacionamos nossas imagens do real com a própria realidade”.
A construção de tal simulacro se dá a partir da produção de um verdadeiro e cotidiano espetáculo, no qual os cidadãos, transformados em consumidores do tema proposto, tornam-se seus atores figurantes. A cidade é reinventada, tematizada, iconificada pelo uso abusivo do city marketing, que transfigura a organização original e fixa novos valores diretamente relacionados com o consumo imposto pela ideologia dominante. Desconstrói as possibilidades de participação política e elimina os pressupostos que permitiriam a gestão democrática do espaço urbano.
“SeaHeaven” se multiplica enquanto cidades planejadas/modelos de cidades, configurando uma imagem de equilíbrio e a materialização do consumo. Abusam da realidade virtual, da simulação e do mascaramento das assimetrias de poder, criando no imaginário coletivo a fantasia de uma cidade segura, civilizada, asséptica. Simples parques temáticos ou hiper-realidades concretas baseiam-se em redes industriais de serviços, articulando a mídia, o capital imobiliário, o entretenimento, em uma cultura pública do consumo de um espaço de qualidade. Multiplicam-se também enquanto que, partes da cidade, no formato de grandes condomínios comerciais e residenciais auto suficiente, shopping centres, espaços multiplex culturais e de lazer, grandes áreas revitalizadas, gentrificadas, business district centres ancorados por corporações comerciais ou financeiras entregam-se a não-lugares que se replicam em todas as geografias, pautados em um sistema de ações com intencionalidades globais que modificam a paisagem e estrangulam os hábitos. Traços originais do lugar são preservados apenas como cópias mal elaboradas de uma memória apagada. Em substituição, são criados ícones urbanos que se apropriam da história, outorgam valor ao solo e à cidade, segregando populações insolváveis e inserindo a urbs num mercado mundial de alta competitividade.
Tais espaços simulacros são mistos de cultura visual, controle espacial e administração privada que alimentam o desenvolvimento da cidade e encaminham o poder local para modelos público-privados de expansão de negócios. Indústrias do imaginário, em que todos obedecem a uma engrenagem que o trabalho comparece disfarçado de animação, ou em que a competência técnica projeta num cad a cidade do pensamento hegemônico, tornada “ideal” para todos os segmentos.
A cidade simulada para a perfeição enclausura, afasta a realidade da produção imperfeita do espaço e do cidadão. Omite as contradições inerentes ao espaço e à sociedade. Exorcisa a segregação (Baudrillard) num postiço mundo da sociabilidade cordial, por assim dizer ficcionalizada que, sob a fachada de um splendid new world, escamoteia o lado sombrio da violência, da pobreza e do trabalho precarizado.


“Parábola sobre o totalitarismo”

Outra leitura possível sobre o filme “O Show de Truman” é uma parábola sobre o totalitarismo (fábula ao regime soviético de então ou antecipação ao império norte-americano de agora?).
Christof (re) escreve a história e manipula a memória; cria o espaço ao qual detêm a personagem; molda a ideologia e faz prevalecer seu poder de dominação. Essa utopia negativa há muito tempo se tornou realidade. Vive-se hoje no mais totalitário de todos os sistemas, cujo centro é formado pelo próprio Ocidente democrático. Dessa maneira, a voz de Christof é a voz do mercado mundial anônimo.
Nessa leitura podemos nos reconhecer como os prisioneiros desse sistema amadurecido. Pequenos Trumans, em menor evidência, mas cativos do mercado, seduzidos pelo consumo subliminarmente imposto pelo merchandising do reality show, ao qual assistimos como substituto de nosso próprio cotidiano.
Truman rechaça a farsa, ao tomar conhecimento dela. Mas, a sociedade contemporânea, se entrega à manipulação por um poder central, que elabora o “pensamento” do indivíduo e recria o imaginário coletivo. Então, consente e até deseja, ser observada, afinal, para muitos, celebridade é ser visto, independente da circunstância. O objeto do desejo é estar no centro da cena, o que torna a sociedade de controle difuso em que “a exposição da privacidade é um valor, não uma tortura”.
Interpassivos, destituídos do espaço enquanto esfera pública, amendrontados com relação ao outro, despolitizados e invadidos na privacidade. Protagonistas ou figurantes? Poder e dominação, simulação e virtualismo, técnica e exclusão. Eis os elementos que nos levam a uma cidade vigiada.
O exercício de controle sobre o espaço urbano se aperfeiçoa e se expressa na arquitetura do medo. Barreiras físicas e de vigilância, muros, grades, guaritas, cercas elétricas, alarmes, sistemas de monitoramento, leitores infravermelho aperfeiçoam e diversificam a cidade carcerária, de Foucault, fazendo emergir a cidade-prisão, lugar em que a polícia substituiu a polis. Pouco diferente da cidade cenário que, mesmo de papel, enclausura, impede que Truman navegue para a liberdade.
O temor da cidade imperfeita, insegura, torna a casa, uma cela “confortável”. O contato com o mundo passa a ser cada vez mais mediado pela tela que, ao mesmo tempo, entretém e atualiza fatos sobre os perigos da rua. O reality show recria, dessa forma, a cotidianeidade abdicada pelo medo; e o olhar eletrônico desloca-se do debate e do conflito coletivo para colocar em destaque o conflito individual, absorvido pela passividade dos citadinos em viver seu cotidiano projetado nesse show da vida.
A cidade fragmentada em territorialidades afronta e recua, provoca e protege-se, enclausura-se em espaços vigiados; ao mesmo tempo vigia.
“A Escola de Frankfurt”
Os frankfurtianos, tendo lido Nietzsche, Freud, Heidegger, sabem que não podem aderir à razão inocentemente. Sabem que a razão não ilumina, não revela a natureza que emancipa do mito através da ciência. Afastam-se do cientificismo materialista, da crença na ciência e na técnica como condições da emancipação social, pois sabem que o progresso se paga com o desaparecimento do sujeito autônomo, engolido pelo totalitarismo uniformizante da indústria cultural ou da sociedade unidimensional. Por isso, o indivíduo autônomo, consciente de seus fins, deve ser recuperado. Sua emancipação só será possível, no nível individual, ao se resolver o conflito entre a autonomia da razão e as forças obscuras e inconscientes que invadem essa mesma razão.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

- O filme começa justamente no momento em que ele passa a desvendar a intrincada equipe que o cerca e a mentira conspiratória que é sua vida.
- Fábula moderna sobre a crueldade dos meios de que uma sociedade avançada pode dispor para manipular os seres humanos.
- O filme lida com a questão do que é a ficção e o que é a realidade. O diretor utiliza-se de várias metáforas para convencer-nos de que realmente é possível estarmos vivendo uma vida artificial sem perceber e que os indivíduos não têm mais controle sobre o que é o público e o que é o privado.
- O culto à celebridade; a vida íntima das pessoas; a curiosidade mórbida que temos na vida dos outros; o mundo virtual; os “paparazzi” etc
- Grande simulação de realidade (tudo que nós passamos pode ser criado, inventado ou controlado) e se a vida é um programa de TV ela precisa de merchandising para se manter viva.
- O que eu quero ou o que a sociedade preparou para mim? Até que ponto o ser humano é livre para escolher seu destino? Quando estamos com outras pessoas somos nós mesmos ou representamos? Como a publicidade na mídia interfere em nossas vidas?
- Referência à liberdade interna, aquela que ninguém é capaz de tocar. Truman expressa essa afirmativa ao exclamar que nunca havia sido colocada uma câmera em sua cabeça e dessa forma, ele exerce essa liberdade em vários momentos; principalmente, quando se lembra de Sylvia, um amor espontâneo e também, quando decide por libertar-se. Aliás, a mulher que Truman esperava encontrar em Fiji simbolizava a sua esperança, que talvez tenha sido a grande catalisadora de capacidade de manutenção do espírito de liberdade.
- Discussão religiosa do paradoxo entre a divina Providência versus o livre-arbítrio. O que é mais importante: a vontade do criador ou a capacidade de escolha e decisão do indivíduo?
- A importância do autoconhecimento; afinal, por que Truman nunca desconfiou da farsa? Será, porque “as pessoas estão acostumadas a viver sem questionar nada ao seu redor”, como respondeu o diretor do filme?!
- Como somos descartáveis, como a vida só interessa realmente àqueles que fazem intimamente parte dela.
- Se nossa vida pode mesmo ser uma mentira, nós somos apenas a imensa propaganda de nós mesmos?

Trailer :

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