segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A faca eterna


Morávamos alguns metros do pequeno, manso e silencioso rio.
Nossa casinha de três cômodos abrigava meus pais, eu e mais quatro irmãs.
Se não conhecíamos o conforto, também não passávamos fome. Apenas, vivíamos.
Vestíamos trapos, ajudávamos na roça, no terreiro, na cozinha e mesmo sem fé, rezávamos antes de dormir, agradecendo as bênçãos do dia.
Minha solidão era companheira, meu silêncio era irmão, minha reflexão era natureza e minhas conclusões eram efêmeras.
E, eu era feliz! Talvez, por desconhecer o que era ser triste.
Assim, cresci. Entre o silêncio das palavras nunca ditas, a falta de carinho das mãos vazias de meu pai e das rédeas calejadas de minha mãe.
Meu pai era o único eletricista da região, estava sempre ocupado e não tinha tempo para a família que vivia nas trevas; minha mãe mantinha a ordem da casa regendo com um chicote de marmelo e parindo mulheres e eu, a caçula, era a metáfora do excesso da família.
Meus dias eram longos, cheios, cansativos e monótonos, porém compartilhava-os com meu único amigo, o Rio. Nas tardes ensolaradas, minhas irmãs acompanhavam-me até suas margens; mas, enquanto distraíam entre si, eu ficava a admirar o seu percurso misterioso e inteiro; navegava em seu leito e permitia-o arrastar meus sonhos através de suas correntezas enquanto, refletia:
- Para onde ia? O que trazia? Estava chegando ou partindo?
Ali imóvel, imaginava lugares distantes, histórias bonitas e vidas diferentes da minha. Na época, nem imaginava que entre mim e o Rio guardavam tantos segredos...
Acariciava-o, descobria-o e tentava entendê-lo através de sua musicalidade. A cantiga que ele entoava me ninava e deixava-me levitar, transportando-me ao indefinível.
Eu tinha apenas dez anos e sentia necessidade de ultrapassar os limites que a cerca da minha casa impunha-me. Desejava romper minhas barreiras e seguir o rio. Navegar, enfrentar obstáculos, desafiar as quedas e chegar não importando onde, mas aportar num mundo mais bonito que o meu!
Até que em uma tarde, minha vida se transformou.
Meu tio Zé chegou embriagado, falou alto, contou vantagens, disse e desdisse.
Depois, pegou uma faca, dirigiu-se ao rio para amolá-la e sem coordenação ou por desatento, deixou-a cair naquelas águas límpidas, sangrando-as para sempre...
Senti como se tivesse levado uma facada em meu peito. O meu rio estava morto e com ele, os meus sonhos!
Nunca mais percorremos suas entranhas – minha mãe jamais permitiu. Apontava-nos os perigos, os riscos e falava-nos em cortes, sangramentos e até em mortes.
Aquele puro Rio, de repente, tornou-se alegoria de vingança, punição e túmulo.
Quando fazíamos alguma traquinagem, nossa mãe nos ameaçava com o rio. Ele era o nosso purgatório, nossa penitência, lugar onde padeceríamos de castigo.
Eu, que antes só tinha medo da escuridão e do olhar distante de meu pai, passei a temer o Rio.
Observava-o de longe e sentia uma culpa que não era minha.
Minha solidão era uma espécie de contemplação do meu real no espelho de suas águas.
Hoje os meus medos são tantos outros...
Passados alguns anos, cresci, mudei-me para a cidade grande e fiz carreira.
Nunca mais me aproximei de qualquer outro rio, via-os como símbolos de perigo, medo e infidelidade.
Muitos daqueles sonhos que em momentos íntimos confiei-lhe, ele carregou-os para o fundo de suas águas, guardou-os para si e nunca se concretizaram.
Minha vida seguiu caudalosamente, com afluentes e influentes, tempestades e calmarias e, já cansada de navegar, sem forças para remar, decidi buscar minha nascente.
Na época meu tio Zé já havia falecido, o nosso antigo casebre não existia mais e eu lutava contra a aniquilação do meu próprio ser.
Caminhei ressabiada ao encontro do meu Rio como se fosse meu último desembarque ou a minha reintegração.
Lá, chegando, para minha surpresa, encontrei-o totalmente morto e em seu lugar, nascera um pé de maracujá, a flor da cuia, da paixão, do coração ferido e da saudade!

Nenhum comentário: