sábado, 30 de outubro de 2010

O FILHO ETERNO (2007)



“Esse foi um livro em que lutei pelo “não sentimento” narrativo, no sentido de não me entregar ao aspecto sentimental da trama, que é poderoso, praticamente irresistível. Claro, é preciso distinguir aqui o narrador do personagem, o que eu tentei manter “frio”, o tempo todo, foi o narrador. Era fundamental que essa distância se mantivesse, ou eu estaria à mercê do personagem, e aí o livro não levantaria vôo, por assim dizer”.


“Só quem tem um filho especial sabe o que quer dizer esse eterno. É uma eternidade laica, concreta, visceralmente amarrada à vida cotidiana”.



I – AUTOR:



CRISTOVÃO TEZZA


Nasceu em 21 de agosto de1952, em Lages, SC. Professor, doutor em literatura e escritor, iniciou sua carreira literária com apenas treze anos, uma coletânea de contos “A cidade inventada”, publicada em 1980 e considerada “muito ruim” pelo próprio autor. Desde então, não parou mais de escrever, e na sequência vieram: “O terrorista lírico” (1981) e “Ensaio da paixão” (1982).
Em 1988 publicou o livro “Trapo” dando-lhe destaque no cenário da literatura brasileira.
Uma das inovações de seu texto é a presença de narradores múltiplos. Em “Trapo”, história que se passa em Curitiba, relata sobre o ponto investigador do professor Manoel, a vida e a obra o poeta Trapo através de seus escritos.

Nos dez anos seguintes, publicou os romances: “Aventuras provisórias” (1989), com o qual ganhou o Prêmio Petrobrás de Literatura, “Juliano Pavollini” (1989), “A suavidade do vento” (1991), “O fantasma da infância” (1994), “Uma noite em Curitiba” (1995). Em 1998, seu romance “Breve espaço entre cor e sombra” foi contemplado com o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional (melhor romance do ano); e “O fotógrafo” (2004) recebeu o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance do ano.
Em 2006, assinou contrato com a Editora Record, que começou a relançar sua obra. Em julho de 2007 foi publicado seu novo romance: “O filho eterno”, e foram reeditados, com novo projeto gráfico, seus romances: “Trapo”, “Aventuras provisórias” e “O fantasma da infância.”
“O filho eterno” foi premiado quatro vezes: o Prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor obra de ficção do ano, em 2007; o Prêmio Portugal Telecom, em 2008; Prêmio Jabuti, em 2008 e o Prêmio São Paulo de Literatura 2008.


II – FOCO NARRATIVO, TEMPO E ESPAÇO:


Por que escrever o livro na terceira pessoa?

“Esse detalhe técnico foi muito importante para mim. Era absolutamente fundamental que eu me afastasse da experiência pessoal para transformá-la em literatura. Ao descobrir a terceira pessoa, percebi a chave da narrativa, o que me deu uma liberdade maravilhosa. Claro que eu poderia escrever em primeira pessoa "mantendo distância", digamos assim. Mas como a experiência era muito pessoal, seria bem mais difícil; eu correria o grande risco de transformar o texto em confissão, o que destruiria o romance. Mas não podia perder de vista a dimensão concreta daquele pai. Assim, ao mesmo tempo mantive algumas "pistas" pessoais espalhadas pelo livro, como para lembrar o narrador do lastro existencial do personagem, para lhe dar mais carne e consistência, para o narrador saber exatamente de quem ele estava falando. O personagem escreveu um livro chamado Trapo, que, por acaso, é o título de um antigo livro meu; o nome do seu filho é Felipe, que é o nome do meu filho, mas o próprio pai não tem nome; é alguém que ainda não encontrou o seu nome. Essa realidade dupla, que aparece como que num espelho meio oxidado - umas partes nítidas, outras escuras e difusas, outras ocultas, algumas escancaradas - é uma das chaves narrativas do livro. No processo de transformar biografia em ficção, criamos uma outra percepção da realidade, que é, enfim, a arma da literatura. Gostaria de me estender um pouco mais sobre essa terceira pessoa e a relação entre literatura e vida, ou biografia, que é uma coisa que está chamando bastante atenção da crítica. Sobre a fronteira entre uma coisa e outra está o fato de que a literatura recorta e escolhe apenas o que tem relevância à unidade temática proposta pela narrativa, que afinal tem um começo, um meio, um fim e um narrador que, em cada momento, tem a visão completa do conjunto. A responsabilidade do narrador diz respeito exclusivamente a essa estrutura romanesca, não aos "fatos" ou às "verdades". Assim, o romance tem uma intensidade dramática que, de fato, não existe na vida, que se dilui pelo tempo. Não vivemos 200 páginas; vivemos 50, 60, 70 anos a fio, um conjunto disparatado de fatos que não são "organizados" por alguém.”

Escrito em terceira pessoa, por um narrador onipresente, depois de vinte anos em construção, a obra é reconhecidamente autobiográfica. Narra ás aventuras e desventuras de um pai adolescente, nos anos 70, seguramente, o próprio autor Tezza, do nascimento e crescimento de seu filho e dele próprio, nas décadas de 80 e 90, encerrando a história no ano de 2006.
Nesse processo, o narrador e autor aproximam-se tanto de seu tema como se misturam a ele, em uma relação visceral, que o distanciamento inicialmente pretendido se desfaz e revertendo-se num caso híbrido de terceira pessoa que soa mais como primeira.



Ao comentar sobre a dificuldade de romancear a sua própria realidade, Tezza afirma:

“Eu acho muito mais difícil romancear a realidade, partir do dado biográfico para daí fazer matéria ficcional. O risco de você apenas fazer uma confissão pessoal, de não sair dos limites da vida pessoal, é muito grande. Não é fácil transformar um fato da própria vida em objeto”.

Em “O filho eterno” o narrador e o protagonista estão impregnados. O nascimento do pai coincide com o nascimento do escritor que adquiriu maturidade e saiu do limbo do nada depois do nascimento do filho, como se um impulsionasse o nascimento do outro e se completassem.
O livro é composto por capítulos que parecem contos independentes sem uma sequência necessária.
Os primeiros capítulos retratam acontecimentos seguindo o tempo cronológico, em seguida, alternam-se aleatoriamente em épocas diferentes.
“O filho eterno” é uma narrativa seca de desencantamento, onde as personagens representam alegorias e denominadas por "ele", "o pai", "a mulher", "a mãe", "a filha", "a irmã", com exceção do filho, Felipe.
O conflito principal inicia-se com o pai aos 28 anos e termina com o filho perto dessa mesma idade.
Além da relação pai e filho são retratadas paralelamente as aventuras do pai quando jovem em Portugal (Coimbra), França (Paris) e Alemanha (Hauptbahnhof) como mochileiro que trabalhava em subempregos e conseguia só para ter o que comer e onde dormir, e que lia mais do que aproveitava o lugar. Ou, no Brasil, em um grupo de teatro interrogado por policiais durante a ditadura militar (em São Paulo) e quando se apaixona platonicamente pela primeira vez (em Antonina, Paraná).
O narrador contrasta suas tentativas de superar-se e vencer como marinheiro, faxineiro num hospital na Alemanha ou revisor de teses acadêmicas com sua dura progressão de aceitar seu filho com um histórico da Síndrome de Down.
Através de seu contato com o distúrbio genético do filho é retratada as dificuldades de aceitar as diferenças, enfrentar o preconceito social e encarar o desafio de educar uma criança como Felipe.
Embora seja um fato trágico e de forte apelo melodramático, o autor consegue equilibrar o discurso fazendo contrapontos com informações científicas engenhosamente colocadas durante as consultas médicas e nas leituras do narrador feitas em busca de explicações.


III – CARACTERÍSTICAS:

Algumas características particulares são evidentes em sua narrativa. Uma delas é o uso excessivo dos dois-pontos. No primeiro capítulo o escritor abusa deles, aparecendo até quatro vezes em um parágrafo. Inicialmente, pode até parecer uma forma particular de escrita de Tezza, sua marca registrada e não um recurso proposital. Porém, é visível que todos os capítulos foram escritos na mesma época.
Cristovão utiliza uma linguagem rica para descrever a vida de um escritor que sobrevive de fazer revisões em teses e textos literários. Entre uns goles de uísques e tragos de cigarros, além de estar envolvido no romance O Ensaio da Paixão que foi publicado em 1985, ele vê sua vida mudar com o nascimento de um filho com trissomia 21.
O ritmo do livro flui de maneira leve e ágil. Recorre a intertextualidade, citações de vários nomes da literatura como de Goethe, Hemingway e Faulkner, filmes, pinturas, desenhos animados; do humor sarcástico; da ironia; das digressões; da rotina diária do menino; da maldição de Sísifo; do intelecto do filho ao dos bebês incubados em “Admirável Mundo Novo”; o restante é basicamente só citação.
De início, o ponto de vista do protagonista gera antipatia aos leitores para depois, transformar-se em aprendizagem e filosofia de vida.
A obra pertence à categoria de romance, embora em vários momentos do livro, ficção e realidade se confundem, por exemplo, o jeito escolhido para apresentar as informações médicas e científicas sobre a síndrome de Down; a dissertação de mestrado que revisou para um amigo geneticista; as buscas em dicionários; a política e economia do Brasil nas décadas de 80 e 90 e sobre a revolução dos Cravos em Portugal, em 1976.

“O escritor tem esse lado meio autista. Tive que me afastar da minha história para ganhar uma liberdade narrativa”, reconhece.

IV – TEMA:


“Começo lentamente a me ‘livrar’ do romance, o que sempre acontece comigo depois de publicar meus livros. Com esse, esta separação está demorando mais pelo impacto que o romance está tendo entre os leitores, mas felizmente já consigo vê-lo um pouco mais do lado de fora, digamos assim. De fato, eu temia que a literatura do romance não fosse percebida, eclipsada pelo tema, mas isso não aconteceu. E também a exposição pública, se “O filho eterno” fosse lido apenas como depoimento pessoal, o que também não aconteceu. Hoje estou muito tranquilo quanto a isso. Sei que escrever é uma atividade dura, difícil, áspera – não temos de esperar nada de ninguém, a não ser da própria cabeça. Mas posso dizer que “O filho eterno” me deu uma profunda e rara alegria como escritor”, confessou.
“O tema do livro é naturalmente reflexivo, transcende os limites do enredo, e assim obrigou a narração a abrir muitas comportas, desde a retomada biográfica do pai até as reflexões mais duras sobre a realidade que ele viveu. Talvez daí venha essa idéia de ‘libertação’ que o romance sugere”, diz o escritor.
“Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade.

V – ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA:


O principal fio narrativo da história começa nos anos 80 com um aspirante a escritor que nunca teve emprego fixo na vida. Ele é sustentado pela mulher durante o período em que não publica nem vende nada e surpreendido pela notícia que seu primeiro filho é portador de síndrome de Down.
Já no hospital, no dia do nascimento, o pai assume o papel de anti-herói calhorda, hipócrita e insensível ao rejeitar e menosprezar seu filho diferente, tratando-o como um estorvo para os seus planos de sucesso, liberdade e sociabilidade, chegando inclusive desejar sua morte.

"Em um átimo de segundo, em meio à maior vertigem de sua existência, a rigor a única que ele não teve tempo (e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa representação literária, apreendeu a intensidade da expressão "para sempre" - a ideia de que algumas coisas são de fato irremediáveis, o sentimento absoluto, mas óbvio, de que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar. Tudo pode ser recomeçado, mas agora não: tudo pode ser refeito, mas isso não; tudo pode voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo é de uma solidez granítica e intransponível: o último limite, o da inocência, estava ultrapassado; a infância teimosamente retardada terminava aqui, sentindo a falta de sangue na alma, recuando aos empurrões, sem mais ouvir aquela lengalenga imbecil dos médicos".
(...)
A manhã mais brutal da vida dele começou com o sono que se interrompe - chegavam os parentes. Ele está feliz, é visível, uma alegria meio dopada pela madrugada insone, mais as doses de uísque, a intensidade do acontecimento, a sucessão de pequenas estranhezas naquele espaço oficial que não é o seu, mais uma vez ele não está em casa, e há agora um alheamento em tudo, como se fosse ele mesmo, e não a mulher, que tivesse o filho de suas entranhas - a sensação boa, mas irremediável ao mesmo tempo, vai se transformando numa aflição invisível que parece respirar com ele. Talvez ele, como algumas mulheres no choque do parto, não queira o filho que tem, mas a idéia é apenas uma sombra. Afinal, ele é só um homem desempregado e agora tem um filho. Ponto final. Não é mais apenas uma idéia, e nem mais o mero desejo de agradar que o seu poema representa, o ridículo filho da primavera - é uma ausência de tudo. Mas os parentes estão alegres, todos falam ao mesmo tempo. A tensão de quem acorda sonado se esvazia, minuto a minuto. Como ele é? Não sei, parece um joelho - ele repete o que todos dizem sobre recém-nascidos para fazer graça, e funciona. O bebê é parrudo, grande, forte, ele inventa: é o que querem ouvir. Sim, está tudo bem. É preciso que todos vejam, mas parece que há horários. Daqui a pouco ele vem - aquele pacotinho suspirante. A mulher está plácida, naquela cama de hospital - sim, sim, tudo vai bem. Há também um rol de recomendações que se atropelam - todos têm alguma coisa fundamental a dizer sobre um filho que nasce, ainda mais para pais idiotas como ele. Eu fiz um curso de pai, ele alardeia, palhaço, fazendo piada. Mas era verdade: passou uma tarde numa grande roda de mulheres buchudas, a dele incluída, é claro, com mais dois ou três futuros pais devotos, atentíssimos, ouvindo uma preleção básica de um médico paternal, e de tudo guardou um único conselho - é bom manter uma boa relação com as sogras, porque os pais precisam eventualmente descansar da criança, sair para jantar uma noite, tentar sorver um pouco o velho ar de antigamente que não voltará jamais.
E as famílias falam e sugerem - chás, ervas, remedinhos, infusões, cuidados com o leite -, é preciso dar uma palmada para que ele chore alto, assim que nasce, diz alguém, e alguém diz que não, que o mundo mudou, que bater em bebê é uma estupidez (mas não usa essa palavra) - eles não vão trazer a criança? E que horas foi? E o que o médico disse? E você, o que fez? E o que aconteceu? E por que não avisaram antes? E por que não chamaram ninguém? E vamos que acontece alguma coisa? Ele já tem nome? Sim: Felipe.
Os parentes estão animados, mas ele sente um cansaço subterrâneo, sente renascer uma ponta da mesma ansiedade de sempre, insolúvel. Ir para casa de uma vez e reconstruir uma boa rotina, que logo ele terá livros para escrever - gostaria de mergulhar no Ensaio da Paixão de novo, alguma coisa para sair daqui, sair deste pequeno mundo provisório. Sim, e beber uma cerveja, é claro! A idéia é boa - e ele quase que gira o olhar atrás de uma companhia para, de fato, conversar sobre esse dia, organizar esse dia, pensar nele, literariamente, como um renascimento - veja, a minha vida agora tem outro significado, ele dirá, pesando as palavras; tenho de me disciplinar para que eu reconquiste uma nova rotina e possa sobreviver tranquilo com o meu sonho. O filho é como - e ele sorri, sozinho, idiota, no meio dos parentes - como um atestado de autenticidade, ele arriscará; e ainda uma vez fantasia o sonho rousseauniano de comunhão com a natureza, que nunca foi dele mas que ele absorveu como um mantra, e de que tem medo de se livrar - sem um último elo, o que fica? Em toda parte, são os outros que têm autoridade, não ele. O único território livre é o da literatura, ele talvez sonhasse, se conseguisse pensar a respeito. Sim, é preciso telefonar para o seu velho guru, de certa forma receber sua bênção. Muitos anos depois uma aluna lhe dirá, por escrito, porque ele não é de intimidades: você é uma pessoa que dá a impressão de estar sempre se defendendo. Sentimentos primários que se sucedem e se atropelam - ele ainda não entende absolutamente nada, mas a vida está boa. Ainda não sabe que agora começa um outro casamento com a mulher pelo simples fato de que eles têm um filho. Ele não sabe nada ainda. Súbito, a porta se abre e entram os dois médicos, o pediatra e o obstetra, e um deles tem um pacote na mão. Estão surpreendentemente sérios, absurdamente sérios, pesados, para um momento tão feliz - parecem militares. Há umas dez pessoas no quarto, e a mãe está acordada. É uma entrada abrupta, até violenta - passos rápidos, decididos, cada um se dirige a um lado da cama, com o espaldar alto: a mãe vê o filho ser depositado diante dela ao modo de uma oferenda, mas ninguém sorri. Eles chegam como sacerdotes. Em outros tempos, o punhal de um deles desceria num golpe medido para abrir as entranhas do ser e dali arrancar o futuro. Cinco segundos de silêncio. Todos se imobilizam - uma tensão elétrica, súbita, brutal, paralisante, perpassa as almas, enquanto um dos médicos desenrola a criança sobre a cama. São as formas de um ritual que, instantâneo, cria-se e cria seus gestos e suas regras, imediatamente respeitadas. Todos esperam.

Há um início de preleção, quase religiosa, que ele, entontecido, não consegue ainda sintonizar senão em fragmentos da voz do pediatra:

- ...algumas características... sinais importantes... vamos descrever. Observem os olhos, que têm a prega nos cantos, e a pálpebra oblíqua... o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro... achatamento da parte posterior do crânio... a hipotonia muscular... a baixa implantação da orelha e...”

O pai lembra imediatamente da dissertação de mestrado de um amigo da área de genética - dois meses antes fez a revisão do texto, e ainda estavam nítidas na memória as características da trissomia do cromossomo 21, chamada de síndrome de Down, ou, mais popularmente - ainda nos anos 1980 - "mongolismo", objeto do trabalho. Conversara muitas vezes com o professor sobre detalhes da dissertação e curiosidades da pesquisa (uma delas, que lhe veio súbita agora, era a primeira pergunta de uma família de origem árabe ao saber do problema: "Ele poderá ter filhos"? - o que pareceu engraçado, como outro cartum).
Assim, em um átimo de segundo, em meio à maior vertigem de sua existência, a rigor a única que ele não teve tempo (e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa representação literária, apreendeu a intensidade da expressão "para sempre" - a ideia de que algumas coisas são de fato irremediáveis, e o sentimento absoluto, mas óbvio, de que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar. Tudo pode ser recomeçado, mas agora não; tudo pode ser refeito, mas isso não; tudo pode voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo é de uma solidez granítica e intransponível; o último limite, o da inocência, estava ultrapassado; a infância teimosamente retardada terminava aqui, sentindo a falta de sangue na alma, recuando aos empurrões, sem mais ouvir aquela lengalenga imbecil dos médicos e apenas lembrando o trabalho que ele lera linha a linha, corrigindo caprichosamente aqui e ali detalhes de sintaxe e de estilo, divertindo-se com as curiosidades que descreviam com o poder frio e exato da ciência a alma do seu filho. Que era esta palavra: "mongolóide".
Ele recusava-se ir adiante na linha do tempo; lutava por permanecer no segundo anterior à revelação, como um boi cabeceando no espaço estreito da fila do matadouro; recusava-se mesmo a olhar para a cama, onde todos se concentravam num silêncio bruto, o pasmo de uma maldição inesperada. Isso é pior do que qualquer outra coisa, ele concluiu - nem a morte teria esse poder de me destruir. A morte são sete dias de luto, e a vida continua. Agora, não. Isso não terá fim. Recuou dois, três passos, até esbarrar no sofá vermelho e olhar para a janela, para o outro lado, para cima, negando-se, bovino, a ver e a ouvir. Não era um choro de comoção que se armava, mas alguma coisa misturada a uma espécie furiosa de ódio. Não conseguiu voltar-se completamente contra a mulher, que era talvez o primeiro desejo e primeiro álibi (ele prosseguia recusando-se a olhar para ela); por algum resíduo de civilidade, alguma coisa lhe controlava o impulso da violência; e ao mesmo tempo vivia a certeza, como vingança e válvula de escape - a certeza verdadeiramente científica, ele lembrava, como quem ergue ao mundo um trunfo indiscutível, eu sei, eu li a respeito, não me venham com histórias - de que a única correlação que se faz das causas do mongolismo, a única variável comprovada, é a idade da mulher e os antecedentes hereditários, e também (no mesmo sofrimento sem saída, olhando o céu azul do outro lado da janela) relembrou como alguns anos antes procuraram aconselhamento genético sobre a possibilidade de recorrência nos filhos (se dominante ou recessiva) de uma retinose, a da mãe, uma limitação visual grave, mas suportável, estacionada na infância. Recusa. Recusar: ele não olha para a cama, não olha para o filho, não olha para a mãe, não olha para os parentes, nem para os médicos - sente uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem do inferno em cada minuto subseqüente de sua vida. Ninguém está preparado para um primeiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda mais um filho assim, algo que ele simplesmente não consegue transformar em filho.
No momento em que enfim se volta para a cama, não há mais ninguém no quarto - só ele, a mulher, a criança no colo dela. Ele não consegue olhar para o filho. Sim - a alma ainda está cabeceando atrás de uma solução, já que não pode voltar cinco minutos no tempo. Mas ninguém está condenado a ser o que é, ele descobre, como quem vê a pedra filosofal: eu não preciso deste filho, ele chegou a pensar, e o pensamento como que foi deixando-o novamente em pé, ainda que ele avançasse passo a passo trôpego para a sombra. Eu também não preciso desta mulher, ele quase acrescenta, num diálogo mental sem interlocutor: como sempre, está sozinho.”
Esse fragmento deixa evidente que a consciência de para sempre que traz consigo reflete a intensidade da dor e do medo do que o espera.
“A ideia – ou a esperança – de que a criança vai morrer logo tranquilizou-o secretamente. Jamais partilhou com a mulher a revelação libertadora” (pg. 39).

“Crianças cretinas (...) Crianças que jamais chegarão à metade do quociente de inteligência de alguém normal; que não terão praticamente autonomia nenhuma”.

"Pai e mãe são tomados pelo silêncio. É preciso esperar para que a pedra pouse vagarosamente no fundo do lago, enterrando-se mais e mais na areia úmida, no limo e no limbo, é preciso sentir a consistência daquele peso irremovível para todo o sempre, preso na alma, antes de dizer alguma coisa. Monossílabos cabeceantes, teimosos - os olhos não se tocam".

"Se eu escrever um livro sobre ele, ou para ele, o pai pensa, ele jamais conseguirá lê-lo".

"Eu não posso ser destruído pela literatura; eu também não posso ser destruído pelo meu filho - eu tenho um limite: fazer, bem-feito, o que posso e sei fazer, na minha medida. Sem pensar, pega a criança no colo, que se larga saborosamente sobre o pai, abraçando-lhe o pescoço, e assim sobem as escadas até a porta de casa".

"Durante todos esses anos sentiu o peso ridículo de ser escritor, alguém que publica livros aos quais não há resposta, livros que ninguém lê; e resistiu bravamente, e pelo menos nisso teve sucesso, ao consolo confortável, à coceira na língua, quase sempre calhorda, de despejar no mundo as culpas da própria escolha".

O narrador analisa os aspectos psicológicos do protagonista, demonstrando o conflito existencial entre o pai e sua batalha com a sociedade; com sua vida e a vida de seu filho; com a sua liberdade e os limites de seu filho.
O pai tem consciência de que não está preparado para o papel de ser pai e muito menos, ser pai de um portador da síndrome de Down e, entre o romance e a autobiografia, a narrativa converge entre outros temas, para refletir o seu amadurecimento diante dessa nova situação.

“Eu acredito que não, embora o resultado final, 27 anos depois, seja o mesmo. Há sempre um abismo entre o evento da vida, que é o acontecimento aberto do cotidiano, o nosso dia-a-dia, e a representação literária. Nesta, a vida é caprichosamente recortada, selecionada, escolhida e emoldurada, transformando-se em objeto, em algo que se vê de todos os lados, com uma nitidez que o simples ‘viver’ jamais nos dá. E, é claro, esse objeto literário não é em si a vida, mas a sua representação reflexiva - é na verdade um olhar (entre milhares de outros possíveis) sobre a vida. Assim, o desenvolvimento do personagem tem um grande grau de autonomia, obedece à lógica interna que a própria narrativa foi criando”, explicou o autor.

A esposa, denominada por Ela, aparece em um papel secundário na obra. Entretanto, representa a base, o porto seguro do protagonista, alicerce de seus objetivos e idealizações como apoio, cúmplice e até financeiramente.
Seus sentimentos maternos a levam acreditar nos tratamentos para a recuperação de Felipe, embora, às vezes, é vista como culpada ou tola por seu marido, inclusive levando o protagonista, várias vezes, pensar abandonar a esposa e filho e, recomeçar sua vida.
A história de amor entre o casal não é relatada. A obra não apresenta o despertar do amor entre eles, nem a concretização desse amor e nem em quais circunstâncias se ocorreu à gravidez e a gestação.
O conflito existencial não se atenta a uma paixão passageira e sim, em suas consequências.
As dúvidas do protagonista concentram-se não apenas em sua aversão a problemática de seu filho, mas, em sua maturidade e aceitação das atenções necessárias de tê-los, indicando que a gravidez provavelmente não foi planejada e confirmando a hipótese ao mesmo tratamento insensível dispensado para a filha caçula, normal.

“A primeira criança de um casamento é uma aporrinhação monumental – o intruso exige espaço e atenção, chora demais, não tem horário nem limites, praticamente nenhuma linguagem comum, não controla nada em seu corpo, que vive a borbulhar por conta própria, depende de uma quantidade enorme de objetos (do berço à mamadeira, do funil de plástico às fraldas, milhares delas) até então desconhecidos pelos pais, drena as economias, o tempo a paciência, a tolerância, sofre males inexplicáveis e intraduzíveis, instaura em torno de si o terror da fragilidade e da ignorância, e afasta, quase que aos pontapés, o pai da mãe. É uma criança – como todo recém-nascido – feia . É difícil imaginar que daquela coisa mal-amassada surja como que por encanto algum ser humano, só pela força do tempo” (pg. 73-74).



Entretanto, o tempo e a convivência transformam o protagonista, que passa dirigir seu olhar ao filho de forma diferente, comparando características e limitações do menino às que ele possui como pai, pessoa e escritor. É o pai que o filho revela, nas suas incompetências e fragilidades, na sua vaidade de homem, como os outros, ainda que redimido pela ilusão libertária de sua arte, a literatura.
O interessante é que muitas das limitações do filho descritas como a limitação visual de dez metros, o trabalho e as motivações artísticas, o sexo, etc. levam o pai a se reconhecer e identificar-se com filho.
Assim, aquele que se sentia um fracassado, “exceto por um leque de ansiedades felizes, ele não tem nada e não é ainda exatamente nada”, transforma-se num autêntico pai batalhador, voltado às necessidades primordiais do seu filho e pleiteando seus direitos na sociedade. Então, o que antes parecia obstáculos para a realização pessoal do protagonista, se tornou subsídios supérfluos perante a descoberta do amor, da aceitação e da posição de um verdadeiro pai. Embora, esta transformação custou-lhe a história de seus sonhos da juventude dos anos 1970 e 80.
O pai não deixa de ser um pai como os outros, encontra a si mesmo no espelho que o filho lhe oferece. Repisa as experiências de sua vida a partir daquelas que se advinham no filho, na fímbria dos limites de ambos.
A aflição do narrador em relação às deficiências de Felipe aparece na forma de observações sobre a limitação comunicativa do garoto; sua incapacidade de entender coisas abstratas como o amor e o tempo; e no seu comportamento cênico, baseado em ações de desenho animado, para se encaixar na sociedade onde vive. É a partir dessas constatações feitas pelo pai que ele começa a se comparar com o menino e passa recuperar na memória situações semelhantes às vividas por Felipe.
O treinamento neurológico nos primeiros anos de vida do filho é contrastado com o treinamento do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as recusas das editoras:

“Eu também estou em treinamento, ele pensa, lembrando mais uma recusa de editora. A vida real começa a puxá-lo com violência para o chão, e ele ri imaginando-se no lugar do filho, coordenando braços e pernas para ficar em pé no mundo com um pouco mais de segurança” (p. 130).
“Um filho é como um espelho no qual o pai se vê, e, para o filho, o pai é por sua vez um espelho no qual ele se vê no futuro.”
O desejo de liberdade e o tempo para a atividade criadora estão sendo sempre solicitados a ceder espaço às exigências cotidianas: o filho leva o pai a ter que trabalhar e exige atenção ininterrupta. Uma vida que queria dedicada à literatura, portanto, fica como plano B do pai de família, mas nunca a potência criadora é extinta, de modo que o pai se divide e se multiplica entre a vida prosaica e a existência no papel, o ser por escrito.

“A criança parece não responder ao seu afeto; vive na sua própria redoma – parece que nada do que há em volta toca a ela de fato” (pg. 127).

“Ele não gosta do imperativo, nem mesmo para si próprio, ao espelho: ninguém me dá ordens. Um orgulho idiota, um pequeno teatro: passou a vida obedecendo, tentando se ajustar a alguma coisa que ele não sebe o que é” (pg. 199).
A casa transforma-se em clínica de estímulos. E, nos intervalos de tempo, o narrador vai escrevendo seus livros. O filho rolando no chão, firmando a cabecinha, sentando, tentando comer sozinho... Tudo é conquista, é vitória.
“A linguagem é conquista penosa, terreno em que o filho avança aos solavancos ininteligíveis, cacos de palavras e relações, em meio a gestos e afetos sem tradução. É preciso um certo esforço para amá-lo, ele pensa – ou ele não pensa, o pai, ele não pensa em nada.”
Passando o tempo, o menino tem aulas de pintura, de música, de teatro, assiste a futebol, à televisão, utiliza o computador. O pai descobre, aos poucos, que “a criança atinge, pela afetividade, uma compreensão superior da vida e do mundo.”
Concretizando a obra de Tezza, pai e filho preparam-se para assistir a um jogo de futebol na televisão, futebol que tornou-se, para o filho, porta de acesso para o mundo, emblema de identidade social, encontro com a palavra escrita através dos nomes dos times. O jogo vai começar e o escritor está concluindo: “um jogo que pai e filho não sabem como irá acabar”. Está o escritor e está Felipe, orgulhoso torcedor do Atlético Paranaense, exibindo seu contagiante sorriso de "campeão" (não de um campeonato de futebol, mas de um torneio bem mais difícil).


ENTREVISTA:


Como surgiu O Filho Eterno?
Esse livro surgiu de uma lenta maturação. Em 1980, meu primeiro filho nasceu com síndrome de Down, mas, na época, não pensei em usar uma situação pessoal como tema literário. De certa forma, não me sentia maduro o suficiente para isso. Depois, surgiu a ideia de um ensaio ou um depoimento pessoal, mas o texto não avançava. Então, veio o romance; criei um personagem e um narrador que sabia tudo sobre ele. Foi como nasceu O Filho Eterno.
A motivação cresceu com o tempo?
Sim, junto à intuição de que eu estava fugindo do acontecimento mais impactante da minha vida. Isto é, passei mais de 20 anos sem considerar a experiência de ter um filho especial como matéria literária. O assunto é tão difícil que eu só consegui escrever quando a experiência deixou de ser um problema para mim. Hoje não tenho mais nenhum problema com o fato de ser ele o meu filho, e não um outro.
Foi difícil reviver todos os questionamentos e sentimentos pelos quais você passou desde a descoberta da síndrome?
Difícil foi amadurecer para escrever o livro. Escrever até que foi relativamente fácil, ainda mais porque eu estava no meu terreno, o romance, a narrativa de ficção. Enfrentei o personagem como tal, sem dó nem piedade, como um "outro", mantendo a postura exata que todo narrador deve ter com o seu tema e os seus heróis. O impulso romanesco que nos leva a escolher um cenário, um tempo, um espaço, esse ou aquele diálogo ou uma palavra avulsa, as imagens, tem uma autonomia muito grande. Boa parte do livro é inventada, cenas, conversas imaginárias. Assim, não "revivi" nada; apenas escrevi a partir de algumas lembranças difusas de quase 30 anos atrás.
Qual foi a reação da família quando você disse que escreveria o livro e, depois, em relação ao resultado?
Em geral, minha mulher só lê meus textos depois de prontos. Ela gostou muito quando falei do projeto e também quando li o livro para ela. Sempre leio meus textos em voz alta, ao final, para sentir a melodia, o ritmo, a sintaxe. Minha filha, a quem o livro é dedicado, gostou muito. E o Felipe não tem a abstração da leitura. A leitura não é simplesmente a habilidade de decodificar sinais escritos. Se a pessoa não consegue perceber, por exemplo, a diferença entre "terça-feira" e "quinta-feira" - e é incrível a complexidade dessa simples percepção de tempo - ler essas palavras avulsas não tem sentido. O Felipe, na verdade, só consegue reconhecer bem rótulos de produtos, placas, logotipos, nomes dos times de futebol; ele é um torcedor apaixonado do Atlético Paranaense. É claro que se ele fosse capaz de ler e compreender um texto em todas as suas relações de sentido, o livro seria outro, completamente diferente - porque o pai também seria outro. Mas meu filho está muito feliz com o sucesso do livro, que ele diz, com razão, que é o livro dele, tanto que colocou os troféus de natação (Felipe nada muito bem) ao lado dos troféus que o livro ganhou este ano. Quando contei pelo telefone que havia ganho o Prêmio São Paulo de Literatura, ele perguntou imediatamente: o troféu é grande?
Você teve algum receio em se expor publicamente?
Depois que comecei, não. Tenho um processo meio autista de escrever. Avanço um pouco às cegas e sempre escrevi sem censura nenhuma. E, afinal, escrevi um romance, não uma biografia; aquele pai não sou eu, ainda que eu tenha usado tantos dados biográficos. Ao reler, levei alguns sustos com o que eu mesmo tinha escrito, mas foram passageiros. Meu maior medo era o de não estar tecnicamente à altura do tema, e, por isso, resvalar para o mais fácil. Como o tema é muito forte e mexe com emoções profundas, sociais, morais, religiosas, familiares, o risco de você simplesmente repetir lugares-comuns e chavões, "calmantes existenciais", é muito grande. Mas a literatura tem a obrigação de ir adiante. Ela precisa, de fato, fazer diferença, dizer o que não é dito, abrir camadas bloqueadas da consciência, criar empatias mais desconcertantes e menos previsíveis; em suma, arriscar, ir mais longe. Assim, escrevi o tempo todo atento para não pisar nas "cascas de banana" que o assunto ia colocando pelo caminho.
Você ficou surpreso com o sucesso do livro?
Fiquei de fato espantado com a extensão do sucesso do livro. Bem, eu esperava que ele tivesse algum impacto, por conta até de minhas obras anteriores. Sou um escritor já com uma fortuna crítica consolidada, de modo que sabia que O Filho Eterno receberia uma boa atenção até pelo tema, bastante pessoal. Mas jamais esperei esse sucesso todo. O que me deixa particularmente feliz é que o livro começou agradando à crítica e daí foi criando, pouco a pouco, sua corrente de leitores. Acho que o grande segredo é o fato de que ele alcançou também o leitor não especializado em literatura, e até o leitor eventual, que raramente se aventura num livro. Isto é, o crítico especialista e o leitor comum entram no livro e são agarrados pela narrativa. É raro que isso aconteça. Agora, brincando um pouco com a minha autoestima, que anda em alta, eu diria que o livro só pode estar fazendo todo esse sucesso, nas duas pontas de leitores, porque é mesmo muito bom...
Mas o que ele significa realmente para você?
Acho que um momento de dupla maturidade. Do ponto de vista literário, é um livro tecnicamente bastante sofisticado pela sua concentração e simultaneidade de tempo e espaço. O livro viaja de uma perspectiva a outra e em 200 e poucas páginas dá conta de uma vida inteira. Eu gosto muito de sua intensidade enxuta. De certa forma, parece que ele "sabe mais do que eu", mas isso quer dizer simplesmente que é obra também de uma maturidade existencial. Talvez essa maturidade seja a única vantagem de se ficar velho... Mas tem o lado prático também. O Filho Eterno, pela sua repercussão, está me abrindo muitas portas. Um dos meus projetos é passar a viver de literatura, e agora essa hipótese já não me parece tão absurda, como normalmente é em um país como o Brasil.
Como você o compara em relação aos seus outros livros?
Num sentido existencial, pessoal, é obviamente um livro único; não sei se vou escrever outro romance com tanta intensidade emocional, embora essa utopia esteja no meu horizonte imediato. No sentido técnico, é um livro que nasceu de dois momentos anteriores: dos romances Breve Espaço Entre Cor e Sombra, que é de 1998, e de O Fotógrafo, que é de 2004. Digamos que fui amadurecendo as formas literárias da intimidade. Uma das perguntas mais difíceis de se fazer a um escritor é sobre qual seu livro preferido. Sei que é um chavão, mas tem seu fundo de verdade: livros são como filhos, frutos de um grande envolvimento emocional, um trabalho pesado de muitos meses, uma viagem meio que sem volta, e a gente sempre sai diferente do outro lado. Às vezes, dão certo, outras, não. Escrever é um tiro no escuro. Eu costumo ter uma boa relação com os meus livros; cada um deles respondeu a um momento especial da minha vida. Em geral, costumo dizer que o último é sempre o melhor e o preferido. Bem, nesse caso acho que é verdade mesmo.
Você acha que escrever fora do eixo Rio-São Paulo dificulta a abertura de espaços para um escritor?
Nos anos 70 e 80, Curitiba era uma espécie de exílio para o escritor. Meus primeiros livros, publicados em edições caseiras, cooperativas de escritores, praticamente passaram em branco. Nenhuma notícia, ou crítica, ou resposta, em lugar nenhum. Os tempos eram outros; tudo muito lento e devagar. O melhor amigo do escritor era a agência de correio. Além disso, os originais eram datilografados; não existia essa facilidade de hoje. As coisas mudaram mesmo em 1988, com a edição de Trapo, pela Editora Brasiliense, numa coleção de prestígio, a Circo de Letras. Então, subitamente percebi a importância do célebre eixo Rio-São Paulo. Finalmente eu "entrava no mapa" da literatura brasileira. Ainda hoje esse aspecto é importante; para existir de fato, você tem de ser editado por uma grande editora, e elas estão quase todas no Rio e em São Paulo. Mas, hoje, é mais fácil publicar, os espaços estão mais abertos, e a internet virou de cabeça para baixo as formas de comunicação e mesmo de comércio do livro. A grande rede está sendo uma revolução total, e ainda não sabemos exatamente o que está acontecendo com o livro e nem o que vai acontecer adiante. Mas sou otimista; acho que para a palavra escrita tudo melhorou. Até porque a internet é o império da escrita, ao contrário da televisão, que é pura oralidade. E, nesse novo espaço da escrita, a literatura está pegando uma bela carona.
Como foi a experiência de ter um filho com síndrome de Down?
Gostaria de falar apenas como escritor, como ficcionista. O meu livro é uma narrativa sobre a experiência de um pai com um filho especial. O próprio fato de ser a síndrome de Down não é tão relevante no caso. E, é claro, o livro tem um espectro amplo de temas, que fazem uma reflexão ficcional que vai do Brasil das últimas décadas até as utopias da geração anos 70, tudo o que, de certa forma, fez a alma do personagem. Minha abordagem se dá sob a perspectiva da experiência literária, não científica ou ensaística. Sinto profunda dificuldade de dar conselhos ou indicações nessa área. Hoje a medicina e a psicologia dispõem de um conhecimento mais aprofundado dos problemas que envolvem a educação de um filho especial do que há 20 anos. Ao mesmo tempo, há também uma espécie de "consciência multicultural", que favorece a percepção das diferenças e das crianças especiais. Aliás, já se fez até novela com personagem Down. Isso é ótimo, porque elimina muita ignorância e desconhecimento a respeito. Sinto que, hoje, a percepção social dos "diferentes" é muito mais generosa do que costumava ser. Basta lembrar que o portador da síndrome, poucos anos atrás, ainda era chamado de "mongoloide", uma palavra extremamente violenta, sem falar do racismo explícito de identificar uma síndrome genética com as características físicas de uma etnia. Sobre uma política específica para as crianças especiais, creio que a inclusão escolar é uma utopia que deve ser sempre pensada como um horizonte de fraternidade. Mas não podemos esquecer que somos indivíduos, que cada caso é sempre um caso único. Descobrir no filho as suas habilidades e os seus limites é um ótimo exercício de realidade concreta, até para diminuir a terrível ansiedade da "normalidade", aliás, terrível até para os "normais". No caso do Felipe, ele é um bom desenhista e, orientado por um ateliê, pinta quadros figurativos muito coloridos e bonitos.Aliás, a singularidade das pessoas especiais, pelo leque amplíssimo de possibilidades, pelos diferentes graus de problemas e de sequelas, acaba por ser muito mais diversificada do que a das outras pessoas. Pensar sobre a inclusão é um importante problema de natureza política. Mas o meu livro é outra coisa. O Filho Eterno faz uma viagem emocional com a arma da literatura e da ficção, uma viagem radical entre pai e filho. O terreno de tudo o que eu escrevo é a solidão dos indivíduos, que, afinal, é sempre um dos grandes temas da arte.

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