domingo, 23 de outubro de 2011

AMRIK, ANA MIRANDA - A SAGA DA IMIGRAÇÃO LIBANESA NO BRASIL: ANÁLISE E RESUMO DA OBRA



I – AUTORA:



II – CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL:

"Os libaneses saíam do Líbano, pensavam que estavam indo para a América do Norte [...] e desembarcavam na América do Sul. Quando iam reclamar que estavam na América errada, o estafeta dizia: Tudo é América!"

No final do século XIX e princípio do século XX, muitos cristãos libaneses pobres emigraram para Amrik, uma corruptela de América, na forma como pronunciavam os imigrantes libaneses que se radicaram na capital paulista.
As primeiras datas da vinda dos libaneses podem ser fixadas antes de 1885 e se estende até 1950.


A imigração árabe em sua primeira fase se deu de forma bastante acentuada devido ao período de conflitos políticos e econômicos em razão do domínio do Império Otomano na região do Oriente Médio. A obtenção de riqueza fácil foi à causa principal das primeiras experiências.
A América desempenhou para os árabes o papel que a Ásia desempenhou para os europeus na Idade Média.
Esta primeira fase imigratória, caracterizada pelo espírito de aventura e improviso serviu como base para as outras fases do século XX quando os aspectos desta imigração sofrerão mudanças culminando com a integração dos filhos dos primeiros imigrantes na vida nacional.
Para Jamil Safady, em sua obra "Panorama da Imigração Árabe", a vinda dos imigrantes, em sua primeira fase, fez-se tradicionalmente com moradores do campo, lavradores ou proprietários de terras. Esses, porém, não vinham para dedicar-se a esta atividade, preferindo atuar no que parecia mais propício à obtenção de lucros rápidos, com os quais eles pretendiam voltar as suas terras de origem e dedicaram-se especificamente ao comércio e às pequenas indústrias, “os mascates” ou “turcos da prestação”.
A mascateação introduziu inovações que, hoje são traços marcantes do comércio popular, como as práticas da alta rotatividade e alta quantidade de mercadorias vendidas, das promoções e das liquidações. Inicialmente os mascates visitavam ás cidades interior e as fazendas de café, levando apenas miudezas e bijuterias. Com o tempo e o aumento do capital, começaram também a oferecer tecidos, roupas prontas e outros artigos.
Esse desejo esteve presente durante todos os movimentos de adaptação e todos os passos de construção da sua vida neste país.
Ana Miranda a partir de uma pesquisa histórica, e, de um diversificado inventário textual, analisa criticamente o contexto social e cultural dessa imigração, entrelaçando história e ficção, bem como, um resgate da herança cultural do Oriente no Ocidente.
A organização social do Brasil, especificamente a cidade de São Paulo desse período é retratada pela ótica de uma dessas imigrantes: a bela Amina, dançarina "dona de um narizinho de serpent of the Nile", através da prosa poética de Ana Miranda, em “Amrik”.

III - FOCO NARRATIVO:

As narrativas das imigrações libaneses no Brasil eram denominadas “Mahjar” e destacavam o papel dos homens, uma vez que a princípio era uma imigração econômica. Quando esta se transforma em imigração de assentamento, as mulheres libanesas entram em cena, em virtude da necessidade de transformar algo provisório em definitivo, estabelecendo núcleos familiares.
Ana Miranda constrói no romance, uma narrativa em primeira pessoa, de focalização feminina, permitindo a reinterpretação da história da imigração pelo olhar de Amina, que rememora sua saga pessoal, desde a infância no Líbano, passando por uma frustrada experiência na América do Norte, até a sua chegada ao Brasil, onde, finalmente, se estabelece.

“...duas imigrantes passam com cestas de compra rumo ao Mercado, nesta cidade a mulher que faz compra no Mercado é imigrante, arifa, operária, as imigrantes nunca passeiam, molas feitas de trabalho,vidas diluídas, fumaças de chaminé fufu feitas de perdas e adeuses, moram nas partes escuras da cidade, nas casas olhadas, entre os ratos e os morcegos, entre os caixotes vazios e as sacas nos depósitos, nos armazéns, detrás dos balcões, nas margens dos rios um capim de fuligem e fumaça feito os navios belas coisas mesmo sujas e pretas, elas sempre querem passar para o outro lado da cidade, mas são apenas mostardinhas ardidas ou umas cadelasdascadelas, corpo de faschefango galho e barro ou a casa a Ana ou vira putana ou casa a Beatriz ou vira meretriz haialaia tutti senza denaro, mijar na cova e lamber o dedo hmmmm elas olha para mim e estira a língua, elas ficam tão vermelhas que parecem as telhas e apressam o passinho de garridice nos sapatos barulho de ferraduras.” (p. 186)

IV – ESPAÇO E TEMPO:

“Amrik” retrata a breve passagem da protagonista Amina pelos Estados Unidos e posteriormente, fixando-se no Brasil, na cidade de São Paulo, na rua 25 de Março onde se estabelecem, no final do século XIX e início do século XX.
Os espaços que se entreabem são modalidades de travessia humana: Oriente e Ocidente fundem-se na figura de Amina, que forma, deforma e transforma-a.
Ao contrário do que ocorre nas crônicas de viagem tradicionais, o tempo não é registrado cronologicamente ao longo do romance, mas faz-se sentir pelo processo de formação que a personagem sofre: de menina ingênua das montanhas à mulher sensual da cidade.

 V - LINGUAGEM:

Ana Miranda explora inovações linguísticas, recursos da modernidade literária, em termos de forma e de sentido. Trata-se de uma linguagem fragmentada e viva que convida o leitor a um constante esforço de organização e pesquisa.
O romance vem escoltado por um minucioso glossário de quase 100 termos, a maioria de origem árabe. São absolutamente dispensáveis, pois a escrita de Ana Miranda prende o leitor mais pela sensualidade que pela razão. Mesmo nos trechos em que assume uma postura didática, como na página 53, quando enumera, paciente, 65 palavras da língua portuguesa derivadas do árabe e iniciadas por "al", de alfinete a almofariz, "só para dizer as mais conhecidas", não permite que lhe fujam a batida sensual, o traço ondulante, a magia.
A escritora incorpora em sua linguagem o ritmo da prosa poética, as onomatopéias, as metáforas, as passagens de pura poesia, a transfiguração literária da oralidade, da fala das personagens, os ditados populares, da musicalidade e também a sua dimensão metafísica, enfim, os recursos que permitem a transposição artística da herança cultural árabe.
Percebe-se a pulsação das palavras resultante da ruptura com o enredo factual, que, cede espaço para a fragmentação do fluxo do pensamento de uma oriental que, aos poucos, tenta se adaptar a vida no ocidente e divaga com expressões em português, inglês e árabe, com escassa pontuação.
Tecido com antigos poemas árabes, das imagens fantásticas de Sherazade d’As Mil e uma noites, receitas de cozinha, parábolas, crenças religiosas, é um romance sobre a imigração libanesa para a América, que reflete acerca do amor, do erotismo, do trabalho e do nacionalismo.

 VI – ESTRUTURA:

A narrativa é cíclica ou circular: começa e termina no Jardim da Luz, São Paulo-SP, quando o tio da narradora, Naim, transmite-lhe o pedido de casamento do mascate Abrahão.
A obra se compõe de 154 capítulos breves, que traduzem o fluxo de memória de Amina. A cada página Amina vai se descobrindo e revelando-se, e, o leitor, aos poucos, se aprofundando na cultura libanesa, através da visão da narradora-protagonista.
A sereia não somente ilustra a capa do livro, como também vão percorrendo o interior da obra como uma forma de desvelo que com todo seu mito de “metade peixe, metade mulher”, “encanta com seu canto e causa sofrimento a quem ela escuta”. Amina se apropria de todas estas características mitológicas e vai, juntamente com a sereia (desenhos) transformando-se.

VII – RESUMO DO ENREDO:

“Ser livre é, frequentemente, ser só.”
  
Amina alegoriza a condição de mulher numa sociedade regida pelo patriarcado. Seu desejo de independência não condiz com as convenções sociais, em uma época onde o ideal de felicidade feminino resumia em ser esposa, mãe e dona de casa.
O preço da libertação de suas amarras sociais é a sua solidão.

“...viver numa casa imensa, de avental contar ovos, bater manteiga, ralar abóbora, picar amêndoas, a natureza nos dedos, regar uma horta no quintal, alface hortelão tomilho, ter sexo na noite abençoado, açúcar cristal na língua hmm. Nas coisas mais simples está o sentido de Amina”.

A protagonista encontrava-se no Jardim da Luz, em São Paulo, no final do século XIX, junto a seu tio Naum Salum, quando este lhe perguntou se aceitava casar com o mascate Abraão.
A proposta de casamento transporta Armina a um processo de descoberta individual, desvendando o seu inconsciente e causando-lhe conflitos existenciais. O momento caracteriza-se pela exacerbação da interioridade, de tal modo intensa, que, a própria subjetividade entra em crise.
O contraste da opinião de seu tio a cerca do casamento e da felicidade resumia na sujeição física aos desejos do mascate; ter de viver numa casa cheia de gente e sem privacidade; cozinhar para quinze pessoas; viver para ganhar dinheiro; sonhar com o retorno ao Líbano; representar a cada noite, uma mulher diferente para o encantamento do marido, e, estava muito distante da busca incansável de sua identidade e de seu sonho de dançarina.
Ana Miranda, nesse momento, instaura no romance, através da protagonista Amina, as angústias e os dramas interiores das mulheres que, descobrem a impossibilidade de uma existência individual diferente daquela almejada e sintetizada na reformulação de um ditado popular que sintetiza o desejo da narradora:

“Mais vale um pássaro na mão que dois voando, não, mais vale um pássaro voando, de que vale um pássaro que não voa?

Essa desconstrução intimista da personagem faz com que seus pensamentos e lembranças assumam uma função libertária, remetendo-a desde a sua infância numa aldeia do Líbano até seus dias atuais, em São Paulo.
O espírito, perdido no labirinto da memória e da auto-análise reclama um novo equilíbrio, transcendendo do plano da realidade para o psicológico.
Amina recorda-se que nunca sentira à vontade em sua casa, visto que, mesmo entre a sua gente, a sua família era tratada de modo diferente, como estrangeira. Esse sentimento de inadequação e rejeição perseguirá a protagonista em toda sua travessia de vida.
Amina questiona se a razão de tanta indiferença não era o fato de que sua avó Farida, ser vista como um estereótipo de transgressão, por ter sido um dia, dançarina, uma “gháziya”.
Em uma sociedade marcada pela convenção e moderação de comportamento, o passado de Farida, maculou a honra da família. 
Amina amava sua avó, mulher guerreira que a criou com amor e carinho, substituindo sua mãe, já que a mesma abandonara a família, quando ainda Amina era menina, indo também, em contramão aos conceitos patriarcais.
Foi através da avó que aprendera às escondidas a dançar e herdar as suas tradições ancestrais: as danças, a culinária, as lendas, o repositório da memória coletiva de seu povo passado de geração a geração.

Amina possui os traços físicos da mãe e é vítima da rejeição paterna. Seu pai, Jamil, inconformado por ter sido abandonado pela mulher, transfere para todo o gênero feminino o ódio que a traição lhe causou.

“Bêbados falavam mal de suas mulheres, das mulheres de todos, papai voltava para a casa bêbado e abria o estojo da faca, maldizia mamãe Maimuna comedora de tios-felpudos mulher quando fala mente quando promete não cumpre quando cumpre volta atrás quando nela confiam trai quando não trai fere revela facilmente sua parte íntima a qualquer um lança olhares a todos semeia discórdia um homem não pode partir para a aldeia vizinha nem por um dia se voltar antes vai encontrar a mulher na relva com um negro Ó mulheres em multidão não conseguis suportar pacientemente a ausência do objeto peludo nem por um dia?” (p. 16)

O tio Naim, escritor intelectual cego, é ameaçado de morte por causa de suas convicções políticas (crítica às invasões turcas no Líbano) e religiosas (defesa do cristianismo) e, é obrigado a deixar o Líbano. Por sua deficiência física, solicita que um dos sobrinhos o acompanhe como guia, nessa dura jornada.

 “Por causa dos turcos e dos mulçumanos que queriam matar tio Naim porque escrevia contra eles tivemos de partir de nossa aldeia, tio Naim encheu um baú com seus livros, umas jóias de ouro para trocar por comida ou roupa, uma manta de pelo de carneiro e nada mais, pediu a papai que mandasse um dos filhos acompanhar, papai olhos os filhos, todos de olhos arregalados, num silêncio fundo, um dois três quatros talvez todos os filhos homens quisessem cinco ir mais papai escolheu o filho que menos lhe servia, seis a única filha mulher, para que servia uma filha mulher? Os filhos iam casar e quando vovó Farida morresse as esposas iam cuidar da cozinha e fazer mais crianças para o trabalho na agricultura, ele me achava vaidosa, dissimulada, meu rosto lembrava o da minha mãe e isso fazia papai sofre ainda mais... (p. 22)

A oportunidade de se livrar da imagem de sua esposa adúltera refletida no semblante de Amina, uma mulher “ardilosa”, fez com que a única menina, fosse escolhida para acompanhar o tio cego.
Tio Naim, homem erudito e representante alegórico da herança árabe, torna-se o mentor de Amina. Ele é apaixonado por livros, mas a cegueira não o permite apreciá-los, então ensina Amina a ler, a escrever, para que ela possa contar-lhe as histórias dos livros, bem como, as palavras em outros idiomas: francês, inglês, grego e aramaico, porquemulher saber língua estrangeira é abrir uma janela na muralha.” (p. 27)
Na partida, a avó lhe dá os seus pequenos tesouros: o tamborzinho de mão, os címbalos e o pandeiro, relíquias que selaria para sempre o seu destino.
A sua origem, suas raízes, suas amarguras e submissões são deixadas para trás e a ansiedade de um novo mundo aflora suas expectativas: 

“...ia queimar talismãs para o navio chegar logo e me levar para Amrik, guiava tio Naim nas ruas, recebia cartas de papai, da aldeia, cartas que me faziam chorar, cruéis, se eu era suave ele brigava se eu era fria ele cuspia se eu dizia elogio ele ignorava de noite na cozinha ele falava mal de mim com a Abduhader, falava mal de mamãe com os outros bêbados de noite e falava mal da mulheres todas ela.” (p. 26)

Logo no início da viagem, as primeiras desventuras surgem. No lugar donavio moderno, veloz e iluminadopelo qual ansiavam, depararam-se com:

“...um ferro velho sujo enferrujado com carne humana amontoada arrre irrra terceira classe dormiam no relento água racionada salobra nojenta arghhh para qualquer coisa era preciso dinheirinho, beliches duros imundos insetos sugavam o sangue de noite ratos mordiam comiam nossos sapatos mofo calor umidade sal vomitava vomitava arre o camarote era para quatro mais oito ocupavam os quatro lugares eu dormia na mesma enxerga com tio Naim e não podiam levantar os dois ao mesmo tempo que alguém estava sempre pronto para ocupar nosso lugar arre.”  (p. 28)

A viagem é acompanhada pelas histórias narradas por tio Naim ou pela leitura que Amina faz dos livros escolhidos por ele, que por questões ideológicas, privilegia as leituras verdadeiramente, árabes, temendo perder seus laços de amor à terra natal.
Para ele: “a literatura árabe lembra sempre a existência de outros mundos além deste que podemos ver e tocar mas não compreender.” (p. 30), mundos como o universo ficcional, em que a realidade é continuamente transformada e recriada.

“...literatura das montanhas e dos desertos sem nunca criar fronteiras entre o real e o irreal como o mundo fora uma miragem (...) uma literatura que pode ser feita e usada por pessoas que não sabem ler nem escrever, mas se ouvem entendem e podem recontar que são histórias e mais histórias e assim foi uma grande parte dela, os livros antigos eram muitas vezes apenas a memória do recitador; outras vezes, eram escritas em letras de ou nas paredes mas fosso como fosse, nunca rompeu com a tradição e nunca romperá ainda que sejam os poetas chamados de imitadores (...) se a literatura árabe é a alma árabe, todavia, não é o mundo árabe o que as pessoas pensam, pensam que o mundo árabe são as Mil e um noites hahahah.” (p. 31)

A narradora, assim, apresenta a necessidade de destruir valores atribuídos à imagem eurocêntrica do Oriente de um mundo exótico, para propor um novo olhar para as mazelas dos conflitos políticos e religiosos, vivenciados pelos povos de origem árabe.

A parte 2, intitulada “Amrik”, retrata á estada de Amina na América do Norte.
Amina e Naim sustentam o sonho de estar se dirigindo à América, a tão sonhada Amrik, no entanto, são retidos em Beirute, onde ficam à espera de passaportes turcos e de vagas no navio. Muitos acabavam por desembarcar no Brasil, no porto de Santos, considerados indesejáveis.
O resultado desse embate foi á separação do tio Naim e Amina.
Amina emprega-se como dançarina em uma Feira de Negócios e o tio, “cachorro-morto”, é despachado para a outra América.
Neste contexto outra transformação ocorrerá em Amina: o desejo de alcançar sucesso a qualquer custo através de sua arte.
A possibilidade de novos rumos, a euforia advinda dos atrativos da América, o cenário cultural e a tendência à individualidade extrema fazem com que a solidariedade familiar e a herança cultural sejam postos em segundo plano pela narradora.

“...eu pensava que ia ficar rica verdadeiramente rich era a terra das liberdades das oportunidades ia me vestir como a rainha de Sabá ia me cobrir de jóias perfumes chapéus com plumas de veludo....” (p. 36)

O sonho, no entanto, se dissolve rapidamente:

“...muito trabalho a meio dólar por dia, jornada de dez horas mas trabalhavam dezesseis, haviam marcado a minha pele com uma etiqueta na alfândega e me deram um banho, mudaram meu nome no papel, acabou a feira e me soltaram na rua.” (p.36)

Desempregada e solitária, Amina vai dormir na rua, nos dormitórios e nos cortiços de imigrantes, onde crianças e velhosmorriam como moscas envenenadas”.
O choque entre as culturas é perceptível nas lembranças de Amina.

“...as casas eram de madeira, as galinhas ciscavam na rua, os carros para lá e para cá numa velocidade estupenda e as pessoas não se matavam por religião diferente da nossa mas eu não condenava a religião deles, rudes e falavam alto, havia desempregados, policiais estúpidos arrogantes patrões ladrões greves de empregados nas máquinas das fábricas comida em lata solidão falta de falar a língua falta da comida da vovó Farida falta de amigos falta de um corpo falta de amor.” (p. 37)
  
Essa reconstituição, porém, permite que o passado seja reavaliado e que sua importância seja reconhecida no presente.
O tio Naim, através de cartas, acena à sobrinha a possibilidade de vinda para o Brasil. No desejo de compor um retrato da cidade de São Paulo, é possível detectar a pesquisa da autora no intuito de fornecer informações sobre a cidade, na época em que se passa a história.

“...havia na cidade de São Paulo cento e quarenta e seis lojas de fazendas e ferragens, sessenta armazéns de gênero de fora, cento e oitenta e cinco tavernas, todos pagavam direito à municipalidade...(...) Vem Amina minha flor de luz (...) vem para São Paulo.” (p. 39)

Amina vê a vinda para o Brasil como uma derrota, poiso Brasil era um lugar de abismos e depósito de imigrantes cachorros mortos que não conseguiram entrar na outra América (p. 45) e resiste o quanto pode à ideia de deixar a América do Norte, o seu “eldorado”.

A solidão, no entanto, é um flagelo diário, que faz com que um mero cumprimento, ou mesmo umas palavras trocadas, desperte em Amina uma fome descontrolada de amor e carinho:

“...à luz da vela escrevi cartas para tio Naim, para a vovó Farida para meus irmãos, para desconhecidos, uma carta para um homem de cabelo vermelho que eu vira atravessar a rua, uma carta ao Mark Twain uma carta a um remador que me dissera Good morning na fonte Bethesda no terraço de onde saiam remadores em barcos compridos, voltei à fonte uma dezena de dias e nunca mais vi o remador mais deixei para ele uma carta de amor (...) a carta marcada um encontro e no dia marcado esperei esperei brbrbrbrbrbr gelada mais ninguém apareceu, veio um policial de ronda, quem sabe porque fazia muito frio o remador não veio, caía neve suave o policial me fez umas perguntas, quase me apaixonei por ele.” (p. 41)

A condição de desamparo e com os sentimentos mais arrebatados forçou-a a vir para o Brasil.

"Eu pensava que o Brasil era um lugar de abismos e depósito de imigrantes cachorros mortos que não conseguiam entrar na outra América, Brasil era um lugar de fracos, mercadores persas chineses tomadores de ópio negros africanos com cigarros saindo fumaça na orelha, insetos e charcos e enchentes e uma cruz no céu para mim queria dizer morte, crucificação de Jesus e o nosso sofrimento ia ser  ali debaixo da cruz como Jesus sofreu na cruz, no Brasil havia padre demais e religião cada uma tão tola que nem brigavam por elas, pobreza, gente deitada nas ruas,  jumentos zurrando na sombra das árvores [...]"

Os capítulos seguintes retratam o cotidiano do imigrante libanês no Brasil que girava em torno do Tamanduateí, parte nova da cidade, sem nenhum progresso; as dificuldades de adaptação na nova terra; bem como a transformação urbanística da cidade de São Paulo, como o desvio do rio para fazer a Rua 25 de Março.

No começo, disse tio Naim, vinham os italianos e os alemães à porta ver despejar de mais árabes, riam de nossos modos, contavam histórias engraçadas sobre nós e não tinha medo (...) mas os mascates foram prosperando e de miseráveis ambulantes descalços que vendiam cigarros em bandejas dependuradas no pescoço ou quibe frito em tabuleirinhos passaram a mascates de santos de madeira e escapulários depois a mascates de tecidos botões linhas arre, assim os mascates se tornaram perigosos usos traiçoeiros ambiciosos usurários (...) mas não somos o que eles pensam, libaneses são limpos cultos, temos a Université dos jesuítas e a Universidade Americana, sabemos falar inglês grego francês, sabemos ler escrever, inventamos álgebra astronomia matemática, os algarismos arábicos o alfabeto, disse tio Naim, trouxemos para ocidentais a laranjeira o limoeiro o arroz, ensinamos ocidentais a melhor cultivar a alfarrobeira e a oliveira, a criar cavalos, a plantar uvas, figos e imensas maçãs, a regar, a pintar as unhas, fazer hortas de verduras e talhões de legumes, mais de seiscentas palavras à língua dos lusis.” (p. 52)

O capítulo intitulado “Ilhas de Elisã” contém palavras 65 começadas com “AL” que foram incorporadas ao português, evocando de forma concreta no discurso a herança cultural árabe e reivindicando um espaço social, poisos árabes são como avós dos brasileiros” (p. 53)
Outro aspecto presente na narrativa é a preocupação em informar que a ascensão social dos libaneses despertou não apenas a inveja de outros grupos de imigrantes, mas também dos brasileiros, o que contribui bastante para a criação e manutenção de estereótipos negativos.

“...chegavam as pessoas todas de uma mesma aldeia, gente do cultivo que vinha para a agricultura mas acabava mascate, ganhava mais dinheirinho, trabalhava para ninguém, problema dos libaneses que pensavam na aldeia, disse tio Naim, não pensavam no país, se falavam pátria diziam aldeia, sua terra sua aldeia queria dizer sua aldeia sua alma. (...) (p. 55)

Esse posicionamento alimenta a imaginação do imigrante e o transportam para dentro de um mundo ficcional, fazendo o esquecer os reais motivos pelos quais teve de deixar sua terra e seus sonhos para trás.

A parte 4, “Mezze”, retrata a vida na casa de Naim. Os textos constituem um resgate da culinária, da cultura e dos costumes libaneses. A tendência dos imigrantes se agruparem com seus conterrâneos é devidamente representada:

Tio Naim estudou na Université dos jesuítas Saint Joseph, escrevia para o ALK-Ahram e agora pediam para escrever sobre imigrantes, dinheiro, política, república, ele gostava de república porque trazia prosperidade, os escritos do tio Naim eram discutidos por libaneses nos mezzes aos domingos, senhores de muitos espíritos contrários e dados a leis da imaginação, mais levados por seus sonhos do que pela realidade, cada qual vendo mais a distância que a proximidade, misturando árabe com português (...)” (p. 62)

Assim, aproximam-se dois elementos que, em um contexto específico, guardam alguma relação de semelhança, transferindo-se, para um deles, características do outro, bem como o desenvolvimento de uma interlíngua e a desconstrução paulatina do sonho do retorno à terra natal.

“...um dia vão perceber que a vida passou, ficaram aqui fazendo fortuna e não voltaram e nem ficaram ricos, só alguns. Entendam logo isso e façam os cemitérios clubes igrejas mâdrassas que nos dos outros não nos aceitam...” (p. 64).

As personagens Chafic e Abraão são apresentadas como representações de duas fases distintas da imigração libanesa. O primeiro representa o imigrante da primeira geração, viajando de cidade em cidade, mascateando. O segundo aponta para uma segunda geração, para uma rede de conterrâneos a dar suporte uns aos outros. Os homens dessa nova leva encontram os primeiros aqui fixados, muitos deles atacadistas, podendo, assim, lhes fornecer mercadoria e ensinar a língua e os conhecimentos básicos para o exercício das transações comerciais.
A sondagem do mundo interior das personagens e a integração do imigrante libanês à sociedade brasileira, observada na obra, sugerem uma espécie de metamorfose determinista.

Abraão abriu a canastra mostrou como vendia renda, bordado, retrós sabonete meia dentifrício coisas pequenas pesam pouco, vendem fácil, preço bom, crédito, lágrimas no olhos, Logo aprendes a língua e se sabes umas poucas palavras podes trabalhar por tua conta, sais de manhã cedo mesmo que chova levas pão farinha pudim de palmito bocajuva vais de casa em casa nos bairros da Sé Santa Ifigênia, havia um mapa da capital da província de São Paulo, Abrão tinha lista de fregueses.” (p. 176)

Estudos sobre a imigração têm comprovado que a música e a culinária são marcas de resistência de imigrantes de primeira geração à aculturação absoluta, ou assimilação, operando como expressões privilegiadas de uma vida entre dois mundos.  No entanto, no romance, o espaço da cozinha, “o lugar do mundo onde uma mulher pode sentir a si, sem precisar dos machos árabes” (p. 130), com seus odores e sabores, é evocado como um dos lugares onde a mulher árabe não experimenta a subalternidade.
O comportamento de Amina, no entanto, contraria a imagem das mulheres imigrantes que descreve, pois é avessa ao trabalho doméstico, preocupando-se, apenas com a dança.  E, esse comportamento reflete a construção de uma imagem estereotipada da mulher oriental com sedutora, sensual e exótica:

“...eu sabia o que diziam mal de mim, dançar era mandar homem nas casas de putas eles em cima delas mas a cabeça em mim, que tudo era para gastarem em mim seus dinheirinhos e eu ficando rica e eles pobres...” (p. 69)

A arte da dança tem papel equivalente, pois é por meio dela que a mulher pode atrair um homem, fazendo-o “andar mil passos num vale ou atravessar um deserto sem camelo.” (p. 20)

Uns homens daqui mandavam buscar mulheres nas suas aldeias no Líbano, mulheres da sua mesma religião maronita e de virgindade virgindade sempre virgindade, alguns mascates logo que ganhavam um dinheiro voltavam a suas aldeias para escolher uma mulher, traziam a mulher para o Brasil ou deixavam a mulher lá e voltavam sozinhos, outros casavam com uma brasileira e voltavam com ela para sua aldeia no Líbano, um mascate casou com uma brasileira e levou a brasileira para Beirute, lá estava outra mulher e a brasileira não aceitou a bigamia, o marido deixou a brasileira na rua, ela ficou perdida nas ruas e ia virar mendiga ou prostituta de turcos, na sala de tio Naim eles discutiram o destino da perdida (...) decidiram trazer de volta a brasileira ai que sacrifício pagar passagem assim para brasileiro tanto libanês precisava trazer mãe ou pai ou irmão, não ia custar tão caro, Mais caro é ter boa reputação...”(p. 67)

A parte 5, intitulada “A casa de Amina”, relata a tentativa de independência da narradora, de preenchimento de um vazio interior que ela não consegue diagnosticar.
Ela vai morar em um sobrado na Rua 25 de Março, em meio ao burburinho de pessoas, os odores estranhos dos lusis, as lágrimas sufocadas da portuguesa, o agarramento do português com a empregada negra na escada, o frio intenso no inverno e o calor absurdo no verão. Os poucos objetos que leva com ela apontam uma característica da personalidade de Amina: a facilidade com que se encanta e desencanta, com os fatos e as coisas.
Assim é que se apaixona por Chafic, um mascate que vê pela janela a tomar banho nu, no rio. Através de Ternura, a empregada de Naim, fica sabendo que ele é mascate de fogos de artifício e que, quando não está no Mercado, vai de aldeia em aldeia no Mato Grosso.
A dançarina acostumada a brincar com a atração dos homens rende-se a uma única visão daquele corpo masculino. E, mais uma vez, os odores e os sabores da culinária árabe surgem para metaforicamente expressar a ebulição em Amina:

“...nunca mais na minha vida o veria, nunca no exterior de mim apenas o veria no escuro de minhas pálpebras, nu encostando sua língua na boca da mulher; fora ele um castigo mandado pelo Deus dos maronitas para eu pagar minhas maldades todas que fiz contra os homens, Chafic moeu meu coração, marinou temperou com pimenta intercalou num espeto com pedaços de lágrimas de cebola assou na brasa grelhou e não comeu...” (p. 88)

Da parte 7 em diante, o diálogo da história cede lugar à história pessoal de Amina, que é contratada pra dançar no casamento do mascate Abraão. Por recomendação do pai da noiva não deveria executar a dança do “al nahal”, o que acaba por fazer, deixando os homens presentes hipnotizados, o velho “fellah” revoltado, um casamento desfeito e uma noiva suicida.
O romance termina no mesmo ponto que começa: com o tio Naim perguntando a Amina se ela aceita casar-se com o mascate, que retorna rico da América do Norte e que nunca a esquecera. Dessa forma, obra nem começa, nem termina: ela continua.
“Amrik” antes de ser um romance de resgate da imigração libanesa no Brasil, é um romance psicológico. Não há etapas de um drama. Cada pensamento envolve todo o drama: logo, não há um começo definido no tempo, nem um epílogo. Há um contínuo denso na experiência existencial e o reconhecimento de uma verdade que despoja o “eu” das ilusões cotidianas e o entrega a um novo sentido da realidade.
Amina busca em si mesma, pela introspecção radical, sua identidade e as razões de viver, sentir e amar.
As formas de vida convencionais e estereotipadas vão se repetindo de geração para geração, submetendo as consciências e as vontades.
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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

GUILLAUME APOLLINAIRE: A RENOVAÇÃO DA POESIA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

1880-1918


Wilhelm Albert Vladimir Apollinaris de Kostrowitzky ou simplesmente, Guillaume Apollinaire (Roma, 26 de agosto de 1880 — Paris, 9 de novembro de 1918) foi um escritor e crítico de arte francês, possivelmente o mais importante ativista cultural das vanguardas do início do século XX. É conhecido particularmente por sua poesia sem pontuação e gráfica, e por ter escrito manifestos importantes para as vanguardas na França, tais como o do Cubismo, além de ser o criador da palavra Surrealismo.
Filho da condessa polaca Angelica Kostrowicka e de pai desconhecido, suspeita-se de um aristocrata suiço-italiano chamado Francesco Flugi d'Aspermont, passa seus primeiros anos entre Roma, Mônaco, Nice, Cannes e Lyon. Desde 1902 foi um dos membros mais populares do bairro artístico parisiense de Montparnasse. Foram seus amigos e colaboradores Pablo Picasso, Max Jacob, André Salmon, Marie Laurencin, André Derain, Blaise Cendrars, Pierre Reverdy, Jean Cocteau, Erik Satie, Ossip Zadkine, Marcel Duchamp e Giorgio de Chirico.
Em 1901 e 1902, trabalhou como preceptor da menina Gabrielle em uma família alemã, na companhia da qual viajará pela Alemanha, tendo se apaixonado pela governanta inglesa Annie Playden, que o recusou, sendo que a mesma partiu em 1905 para a América. Da paixão não correspondida, surgiu « Annie et La Chanson du Mal-Aimé ».
Entre 1902 e 1907, de volta a Paris, trabalhou como empregado de bancos e começou a publicar contos e poemas em revistas. Em 1907, conhece a artista plástica Marie Laurecin, com quem terá uma tulmutuada relação. É por essa época que decide viver de seus escritos. No começo de 1907, publica anonimamente As Onze Mil Varas. Em 1909 publicou o seu primeiro livro oficial: O Encantador en Putrefacción, baseado na lenda de Merlin e Viviane. No mesmo ano, se dispõe a publicar uma antologia dos textos do Marquês de Sade, bem de acordo com uma característica sua que chocava os adeptos da tradição francesa: o fascínio pelo romance libertino. Assim, o mesmo foi o responsável pela introdução dos "livros maldidos" de Sade na cena literária francesa do início do século, que até então era um escritor praticamente desconhecido. Na apresentação da edição, escreveu um longo ensaio biográfico no qual se referia à Sade como "o espírito mais livre que já existiu no mundo".
Em setembro de 1911, quando já era reconhecido como um dos poetas mais importantes da vanguarda parisiense, Apollinaire é acusado de cumplicidade no roubo de uma obra do Museu Louvre, nada menos que a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, roubo no qual Pablo Picasso, também já muito famoso, foi igualmente implicado. Ele é preso durante uma semana e depois liberado. Esta experiência o marcará. Aos olhos dos defensores das tradições clássicas, que se aproveitaram da situação para denunciar "atos de barbarismo" dos estrangeiros contra a cultura nacional, pouco importava a inocência de Apollinaire no caso, visto que ele era acusado de atentar contra os valores da civilização, acusação esta estendida a outros estrangeiros radicados em Paris, como Pablo Picasso, Gertrude Stein e Stravinski.
Em 1913, Apollinaire publica Álcoois, coletânea de seus trabalhos poéticos desde 1898. Sua poesia dispensava a pontuação e a tipografia regular. Voltava-se para uma temática cosmopolita, na qual incluía novidades técnicas como o avião, o telefone, o rádio e a fotografia.
Em agosto de 1914, ele tenta se alistar nas Forças Armadas Francesas, sem sucesso, visto que não possuía a nacionalidade francesa. Em dezembro de 1914, repete a tentativa, sendo aceito e iniciando seu processo de naturalização. Pouco antes de ingressar efetivamente nas Forças Armadas, conhece e se apaixona por Louise de Coligny-Châtillon, chamada por ele de "Lou". É uma jovem divorciada com um estilo de vida livre, que não esconde do poeta sua ligação com um homem por ela chamado de "Toutou". Ele dedicará a moça vários de seus poemas. Quando Apollinaire parte para o campo de batalha, uma correspondência de uma poesia notável nasce dessa relação. Ambos rompem em 1915, prometendo continuar amigos.
Em janeiro de 1915, Apollinaire conhece Madeleine Pagès em um trem, de quem ficará noivo em agosto daquele mesmo ano. Mas em abril de 1915, ele parte com o 38º regimento de artilharia de campo para o fronte de batalha. Em março de 1916, é naturalizado francês, sendo que naquele mesmo mês é ferido gravemente na cabeça. Após longa convalescença, volta gradativamente ao trabalho.


Em junho de 1917, sua peça Les Mamelles de Tirésias, drama surrealista mesclando desespero com humor e escrita durante sua recuperação do ferimento, é encenada. Ele também publicou um manifesto artístico chamado L'Esprit Noveau Et Les Poétes. Em 1918, publica os famosos Calligrammes, poemas gráficos sobre a paz e a guerra de notável lirismo visual. Casa com Jacqueline, a "bela russa" do poema "La Joulie Rousse", que publicará muitas de suas obras póstumas.


Morreu jovem com apenas 38 anos de idade, aos 9 de novembro de 1918, vítima da gripe espanhola, doença pandêmica que também chegou ao Brasil. Foi enterrado no cemitério de Père-Lachaise em Paris. Sua obra literária e crítica anunciava os princípios de uma nova estética que tinha como fundamento a ruptura com os valores do passado. Os seus poemas, O bestiário ou o cortexo de Orfeo (1911), Álcoois (1913) e Calligrammes (1918) refletem a influência do simbolismo, com importantes inovações formais. Ainda em 1913, apareceu o ensaio crítico Os pintores cubistas, em defesa do novo movimento como superação do realismo.







quarta-feira, 5 de outubro de 2011

DIEGO VELÁZQUEZ (1599-1660): “PINTOR DOS PINTORES"; RETRATISTA DA CORTE; PRECURSOR DO IMPRESSIONISMO!


“Só para ver Velázquez já vale a pena a viagem à Espanha; é o pintor dos pintores. Ele não assombra, me deixa maravilhado.”


Édouard Manet

 
Diego Rodríguez de Silva y Velázquez era filho de nobres e nasceu em junho de 1599 em Sevilha, na época a cidade mais rica da Espanha devido ao seu movimentado porto, às suas colônias no Novo Mundo, em pleno “Século de Ouro” espanhol.

Sevilha na época, não era apenas a cidade mais rica e povoada da Espanha, como também, configurava-se como um formidável centro cultural para onde confluíam as principais correntes artísticas européias e os marchands de outros países.
Foi o primeiro filho do casal Juan Rodríguez de Silva e Jerónima Velázquez, ambos naturais de Sevilha e integrantes da pequena nobreza.
Seus avós paternos eram portugueses radicados na cidade andaluza, era uma época de intensas correntes migratórias na Península Ibérica, facilitadas pela união das duas coroas.
Naquela época havia ampla liberdade para a adoção de sobrenomes, razão pela qual o pintor nunca utilizou o nome paterno Rodriguez de Silva. No decorrer da carreira, o artista assinou suas obras com três combinações: Diego Velázquez, Diego Velázquez de Silva, e Diego de Silva Velázquez nos últimos anos de vida.
Incentivado pelo pai, estudou nas melhores escolas e, começou a sua carreira artística precocemente, primeiro com Francesco de Herrera, conhecido como "el Viejo", e depois com Francisco Pacheco, uma das personalidades mais reconhecidas da cultura sevilhana da época, que viria a ser seu sogro.
À época do casamento, o mestre escreveu: "Casei-o com minha filha, movido por sua virtude e integridade, seus dotes e pelas promessas de um grande e inato talento".
Já na adolescência seus quadros apresentavam seu total domínio da técnica.
Velázquez encontrou em Pacheco um mestre excelente que soube transmitir-lhe os fundamentos teóricos e práticos do desenho e da pintura. Mas curiosamente e diferentemente das bibliotecas da época, os livros sobre religião eram escassos.
Em 1617, Velázquez se casou com Juana Pacheco, filha de seu mestre. Na época, Pacheco não apenas demonstrava orgulho pelas virtudes artísticas de seu discípulo como vislumbrava a possibilidade de o casamento garantir a continuidade de seu ateliê e do ofício familiar. No entanto, permanecer em Sevilha significava depender, fundamentalmente, das encomendas da Igreja. Velázquez pretendia também dignificar seu ofício. Embora os religiosos, os nobres e a rica burguesia mercantil solicitassem encomendas para os pintores, a atividade ainda era considerada um ofício de pouco valor.
O pintor, na verdade, sentia forte compulsão por refletir e transmitir a realidade tal como era. Para concretizar suas aspirações pictóricas, Velázquez emprestou de pintores maneiristas, como Pedro de Campaña, a observação rigorosa do natural. Enriqueceu-a com o tenebrismo, técnica que enfatiza os contrastes entre as zonas escuras e as iluminadas por um único foco.
Essa forte iluminação ressalta volumes e relevos. Ao mesmo tempo, põe em primeiro plano pessoas ou objetos que, em princípio ou pelo título do quadro, não pareciam destinados a ser protagonistas.
Ao confrontar a realidade, o pintor valorizou objetos do cotidiano. A mesma preferência era vista na reprodução de personagens populares da cidade. Velázquez não se detinha no cômico ou no grotesco das personagens, mas os mostrava respeitosamente, ressaltando sua individualidade e sua dignidade.
Exemplos de pinturas a óleo dessa fase são “A Mulata”, que mostra a imagem de uma serviçal junto a uma mesa de cozinha sobre a qual há vários objetos.

”A Mulata”, 1617-1618.


Outro exemplo de maior manifestação do período sevilhano é “O aguadeiro de Sevilha”.
A tela apresenta um homem quase na velhice, cuja dignidade contrasta com a vestimenta esfarrapada, oferecendo uma taça de água a um jovem de classe social mais alta. Entre ambos, em meio à penumbra, outro homem adulto bebe com avidez de um copo de vidro. Tudo leva a crer que o modelo tenha sido um corso, apelidado de “El Corso”, que naquela época distribuía água em Sevilha.
Nela, os retratos e os objetos que ocupam o lado esquerdo da tela recebem toda a luz que gradualmente percorre a pintura até atingir a penumbra no lado oposto.
O jogo de luzes e sombras desvenda os objetos e os rostos ao mesmo tempo em que, os unifica. Igualmente admiráveis são a perfeição do desenho e a combinação de cores.

“O aguadeiro de Sevilha”, 1620.


A cena é simples e quase fotográfica, mas adquire certa solenidade pela seriedade dos rostos e das cores terrosas, predominantes nessa fase de Velázquez.
A iluminação descreve uma linha oval que parte do cântaro e avança pelo recipiente menor sobre a mesa, pelo pescoço e pela face do menino, pelo rosto do aguadeiro e sua alvíssima manga da camisa, até se fechar sobre a asa do mesmo cântaro e a mão esquerda do homem.
A maestria do sevilhano nos “bodegóns” pode ser observada no delicado trabalho realizado sobre o cântaro e na transparência da taça, cujo fundo descansa um figo que aromatiza e refresca a água.
Há diferentes opiniões a respeito do significado da obra. Para alguns estudiosos é uma mera representação de uma cena da vida sevilhana do século XVII. Outros pesquisadores, por sua vez, sustentam que se trata de uma alegoria em torno da roda da vida e quase uma cerimônia de iniciação na qual participam as três idades do ser humano. O ancião serve uma fina taça de água (a vida ou o conhecimento) a um menino quase adolescente, enquanto o homem que, na penumbra bebe ansiosamente, representaria a vitalidade da meia-idade.
Essas composições já destacam as notáveis habilidades de Velázquez para o retrato: os traços precisos e firmes abrangiam com singular perfeição todos os detalhes do rosto do modelo. O resultado era como uma radiografia da alma praticamente capaz de revelar seu estado de ânimo e suas inquietações.
Dessa fase, chama a atenção o retrato “A madre Jerónima de la Fuente”, pintado quando a religiosa, então com 70 anos passou por Sevilha rumo às Filipinas, onde fundaria um convento.

“A madre Jerónima de la Fuente”, 1620.


Seu rosto e a forma como empunha o crucifixo mostram o peso de uma vida próxima do final, mas uma determinação de ferro.
São poucas as obras de Velázquez com temática religiosa comparadas ao montante de sua produção. Mais do que aspectos sagrados, cabe ressaltar o lado humano e social do pintor. Com um recurso desenvolvido por ele, que pode ser chamado “o quadro dentro do quadro”, o tema religioso convive com o palco real mediante um quadro, um espelho ou uma janela que encerra a cena sagrada no fundo da composição principal.
Nota-se que esse recurso já havia sido usado em “A Mulata”: no ângulo superior esquerdo, por trás da personagem principal, observa-se Cristo de frente, diante de uma mesa, acompanhado de outro comensal disposto na cabeceira.
Compartilhar o cotidiano e popular com o sacro era um modo de relegar o tema religioso a um pequeno quadro no total da composição.
Na fase sevilhana, essa técnica encontrou melhor expressão em “Cristo na casa de Marta e Maria”.

“Cristo na casa de Marta e Maria”, 1618-1620


Nessa tela, Velázquez integra na mesma cena a presença em primeiro plano de duas mulheres na cozinha e um “bodegón”. No ângulo superior direito está situado um tema do Evangelho, Cristo, Maria e Marta, visto através de uma janela ou de um espelho.
As feições das personagens e do “bodegón” contrastam com as do tema religioso, as vestimentas e os objetos do primeiro plano se opõem às formas mais imprecisas do autor e uma concepção técnica da pintura.
Ainda em Sevilha, Velázquez produziu obras religiosas ao estilo convencional. Entre ela, estão: “A adoração dos Reis Magos”, “São João em Patmos”, “Imaculada Conceição”, “São Paulo”, “São Tomás” e “A virgem impondo a casula a Santo Ildefonso”.
Embora com temática convencional, essas produções anunciavam o naturalismo na peculiaridade de cada rosto, os volumes, a forte iluminação contrastada com densas sombras e uma gama de cores quentes com zonas acinzentadas.

“A adoração dos Reis Magos”, 1619.


Neste quadro Velázquez faz uso do claro-escuro e do tratamento corpulento das vestimentas. O trabalho nos vincos confere às roupas uma aparência semelhante à das esculturas.
Velázquez compôs o quadro com um jogo de diagonais. No cruzamento das linhas estão posicionados a Virgem e o Menino, a quem se dirigem os olhares dos protagonistas da pintura. A iluminação que provém do lado esquerdo, também está focada na Mãe e no Filho, vestidos com as roupagens mais brilhantes da tela.
A luz que desliza sobre a vestimenta do personagem ajoelhado contribui para direcionar os olhos do espectador para o núcleo do quadro.
No ângulo superior esquerdo percebem-se o crepúsculo, que contorna algumas folhagens, uma colina e o fuste de uma delgada coluna junto a Baltasar, o rei negro. Esses elementos antecipam as qualidades paisagísticas do pintor.
A vocação pelo natural se manifesta no uso de modelos: é tido como certo que a Virgem é sua esposa Juana; o Menino, sua filha Francisca; o próprio Velázquez , Gaspar, que está em primeiro plano; seu sogro Pacheco é Melchior; Baltasar, seu irmão; e o pajem por trás deste, o rapaz que serviu de modelo em várias obras. Mas supõe-se que para José o pintor não usou modelo vivo, porque a qualidade da confecção de sua cabeça é inferior à de outros personagens do quadro.

Em 1622, Velázquez viajou para Madri com o objetivo de trabalhar na corte de Filipe IV. Não obteve êxito em seu propósito e retornou a Sevilha. Em sua breve estadia na capital do reino deixou um notável retrato: “O poeta dom Luís de Góngora y Argote”.

“O poeta dom Luís de Góngora y Argote”, 1622.


O mestre Francisco Pacheco, sogro do pintor, encomendou a Velázquez o busto de algum personagem famoso para incluir em seu livro “Descrição de verdadeiros retratos de ilustres e memoráveis varões”. Góngora contaria com 60 anos e encaixava-se, sem dúvida, na descrição de “um ilustre e memorável varão”. Sua poesia culteranista situava-se no apogeu da fama, apesar dos ataques e do desprezo de outros gênios da época, como Lope de Veja.
É importante notar o modo de quebrar os planos de um rosto e de formular as sobrancelhas, com pinceladas amplas, características próprias do artista.
Sobre um fundo liso e com a vestimenta negra quase sem detalhes impera o rosto austero do poeta, com olhos reveladores de traços de amargura e receio.

Em 1623, Velázquez e seu mestre viajaram para Madri, e conseguiu que o rei posasse para o pintor.
O resultado foi um retrato equestre que causou admiração ao rei pela fidelidade e perfeição, que declarou que, dali por diante, somente Velázquez pintaria seus retratos. Ocuparia a função até o fim da vida, o que lhe daria condições de viajar, trabalhar com tranquilidade e poder desenvolver livremente sua vocação pictórica.
Para compreender melhor a importância adquirida por Velázquez na corte, cabe lembrar que a Espanha, com suas possessões na América, ainda perfilava como principal potência européia.
À margem de alguns retratos encomendados por particulares durante seus primeiros tempos em Madri, a produção de Velázquez nesse período concentrou-se exclusivamente na família real e na decoração dos bens da coroa.

“Filipe IV vestido de negro”, 1624-1628.


A data de realização desse quadro encontra muitas controvérsias. Os especialistas concordam que a obra se situa nos primeiros anos de Velázquez na corte de Madri, antes de sua viagem à Itália. O catálogo do Prado, onde o quadro está exposto, indica que a execução seria anterior a 1628, ano em que o autor teria modificado a forma como o monarca se encontra em pé, bem como a vestimenta.
O catálogo sustenta que “as correções são notórias e provam, em relação à postura, que este retrato seguia inicialmente as linhas de outro pintado em 1624, atualmente no Metropolitan Museum de Nova York”.
Com essas mudanças, o pintor sevilhano procurou adequar sua obra aos ventos de austeridade que sopravam na corte, do reino.
Naquela época, o monarca havia proibido o uso excessivo de jóias e de trajes ostentosos. Nesse sentido, o retrato de Velázquez reflete uma figura singela, mas consciente de sua dignidade e posando como por obrigação.
O olhar e os grossos lábios mostram certo desdém e até ausência de emoções. Os traços grossos do corpo contrastam com a pincelada mais delicada e ligeira na cabeça e, em particular, com o cuidadoso estudo do cabelo.
A iluminação se concentra sobre a face e as mãos, enquanto o fundo neutro ressalta a vestimenta negra.
O monarca segura um papel na mão direita; a esquerda descansa sobre a empunhadura da espada. A cena se completa com a visão parcial de uma mesa, com uma toalha vermelha, sobre a qual repousa um alto chapéu negro de abas estreitas.
Para romper a verticalidade imposta por um retrato de corpo inteiro, Velázquez articulou um triângulo visual formado pelos elementos mais claros e expressivos: o rosto e as mãos.

O barroco era o estilo predominante na época, com seus contrastes de luzes e sombras, cores escuras e carregadas. Velázquez introduziu a técnica das manchas distantes, gerando uma atmosfera que permitia a visualização total das formas de imediato.
Sua arte era mais voltada para a cor: função de decorar, construir cenários grandiosos, ilusionista e envolvente.
Desse modo, Velázquez pode ser considerado um verdadeiro revolucionário: um precursor do Impressionismo!
As cores quentes e terrosas deram lugar a uma ampla profusão de azuis, cinza, verdes e amarelos.
A obra de Velázquez se caracterizou pela fidelidade à realidade e ao visível. Seus personagens mitológicos apresentam uma humanidade tão profunda que, muitas vezes, o espectador só descobre a figura em questão com o auxílio do título do quadro.
Durante o período a serviço da corte, Velázquez quase não incursionou pela pintura religiosa, mas mergulhou na mitológica.

“O triunfo de Baco”, popularmente conhecido como “Os bêbados” é um dos quadros mais representativos de suas concepções: um jovem seminu rodeado por camponeses, numa cena irreverente que parece uma zombaria ao estilo sublime das pinturas mitológicas da época.

“O triunfo de baco” (“Os bêbados”), 1628.


O deus Baco, sobre o qual se concentra a maior iluminação do quadro, é um jovem seminu sentado num tonel, de lábios sensuais e olhar questionador. Está rodeado de várias personagens de diversas origens: de camponeses e pícaros até dois homens que revelam certa nobreza, passando por um jovem seminu recostado e com uma taça na mão e um soldado que recebe, ajoelhado, uma coroa de pâmpanos.
Em meio à cerimônia da alegria, à vitalidade e à evasão. Velázquez convoca o mito e a realidade, a representação iconográfica do mundo clássico e a perpetuação no presente do culto ao deus do vinho.
Passado e presente coincidem nos dois personagens centrais da tela. Talvez a diferença mais marcante seja a direção de seus olhares. Seus modelos dialogam diretamente com o espectador.

Em 1628 tornou-se amigo do pintor holandês Rubens, que visitava Madri. Os pintores discutiam sobre trabalhos do Renascimento italiano e mitologia, o que aumentou o desejo de Velázquez de conhecer a Itália, terra de pintores que exerceram grande influência sobre ele, como Caravaggio, Ticiano, Tintoretto e Veronese.
Em 1629 Velázquez embarcou de Barcelona para a Itália como membro da comitiva de Ambrosio de Spínola, marquês de Balbases. Até janeiro de 1631, enquanto esteve lá, Velázquez empreendeu uma verdadeira jornada de estudos por Gênova, Milã, Veneza, Ferrara, Cento, Roma e Nápoles.
Deslumbrado com os pintores venezianos, realizou cópias de vários autores, entre ela “Comunhão dos apóstolos”, de Tintoretto. No Vaticano, Velázquez teve absoluta liberdade para estudar e copiar as obras de Rafael e Michelangelo.
Durante sua estadia na Itália, Velázquez pintou “A forja de Vulcano”, “Jacó recebendo a túnica de José” e “Dona Maria da Áustria”, rainha da Hungria. As duas primeiras obras são as mais significativas.

Em “A forja de Vulcano”, Apolo comunica a Vulcano a infidelidade de sua mulher Vênus, que o trai com Marte. Impressionam as reações das personagens. O rosto de Vulcano expressa espanto e raiva, enquanto os dos obreiros refletem a tensão do momento.

”A forja de Vulcano”, 1630.


Nota-se que os tons são mais vivos do que nas pinturas anteriores, como se percebe no vermelho-alaranjado da túnica de Apolo, na chama da forja e no metal vermelho vivo que Vulcano prende sobre a bigorna. Os corpos, exibidos em sua vitalidade, adquirem uma consistência escultórica.
Novamente, Velázquez recorre à mitologia para propor seus desafios técnicos e estéticos. Aborda a questão luz e sombra por dois focos luminosos: o deus Apolo e a forja. Equilibra a composição demoninada pela certicalidade dos corpos com a tensão do jogo de olhares e preenche o meio com ações e objetos. Finalmente, desmitificou um tema mitológico e o usa pra relativizar o tempo: Vulcano, os ferreiros, as ferramentas e a armadura pertencem à atualidade de Velázquez.

“Jacó recebendo a túnica de José” reproduz um episódio bíblico do Gênesis, em que os invejosos irmãos de José o vendem como escravo e apresentam a seu pai, Jacó, a túnica ensanguentada como prova de que José teria sido vítima de uma fera selvagem.
Apesar da ironia presente nessas duas telas, própria das incursões de Velázquez na mitologia, o artista chamou a atenção pelo domínio do nu estatuário, o que demonstrava a influência positiva das inúmeras obras que contemplou durante sua passagem pela Itália.

Quanto ao retrato de “Dona Maria da Áustria”, Francisco Pacheco, relatou: “Por causa da falta que fazia, foi determinada a volta de Velázquez à Espanha. Antes de retornar, o pintor parou em Nápoles, onde pintou um lindo retrato da rainha da Hungria, para trazê-lo a Sua Majestade. Após um ano e meio de ausência, chegou a Madri no início de 1631”.

“Dona Maria da Áustria”, 1630.


Um Velázquez ainda mais influenciado pelos renascentistas e pela arte clássica retornou a Madri em 1631, iniciando sua fase de maior produtividade.
O pintor buscava na natureza os seus motivos, afastava-se do estilo clássico e de suas alegorias, pintando o mundo como aparecia a seus olhos. Optou pela moderação e pelo realismo chegando às vezes, trabalhar anos numa mesma tela. Seu talento também se estendeu à pintura de episódios históricos; religiosos e mitológicos como pessoas comuns, em poses mais naturais, evitando os exageros da tradição formal desenhadas contra um fundo neutro, cujas representações refletem seu grau de maturação artística. Mostrava e ridicularizava a figura em “postos” que não conduzia com a sua posição e apresentava uma pintura cortesã, através um vasto repertório de tolos e anões, que alegram a vida da família real. Em outras obras reproduziam cenas campestres ou de caça. Em todos os casos, o artista demonstrou sua maestria para captar a psicologia do modelo, como pode ser percebida pela evolução refletida nos quadros do estado de ânimo de Filipe IV diante de acontecimentos pessoais e políticos.

 “Filipe IV de Espanha”, 1634-35.

“Filipe IV”, 1635.


Os pesquisadores levantam dúvidas quanto à data deste quadro. As diferentes opiniões o localizam entre 1631 e 1635. De qualquer modo, não há dúvida de que a obra seja posterior à primeira viagem de Velázquez à Itália.
Chegou-se a essa conclusão por duas características presentes na tela: a influência de Rubens na forma de conferir cor e iluminação ao rosto; e por mostrar um modelo no qual já não se notam sinais da adolescência ou de juventude extrema, próprios dos retratos de Filipe IV da década de 1620.
Nesta obra, o pintor parece ter buscado inspiração em elementos barrocos, como a cortina vermelha do fundo, que brinda grandiosidade ao ambiente, e o esplêndido traje marrom do rei, sobrecarregado de bordados em cinza com reflexos dourados, nos quais o hábil pincel de Velázquez se entreteve num verdadeiro banquete de detalhes e florituras.
Na ocasião, Filipe IV posou praticamente de frente e com a expressão abstraída, ausente, ainda que os olhos pareçam vivazes. As mãos estão com luvas: a esquerda repousa sobre a empunhadura da espada, enquanto a direita sustenta um papel, seguramente uma petição do artista, no qual se lê, em três linhas: “Senhor/Diego Velázquez/Pintor de V.Mg.”
À direita do quadro se nota uma mesa sobre a qual está um luxuoso chapéu de plumas, cuja cores combinam com as do traje.
A mistura de cinza e branco da vestimenta, das mangas e das meias, embora estas não tenham o branco original, pois foram restauradas em 1936, contrasta com o negro do ângulo superior direito, o vermelho da toalha de mesa e do cortinado, bem como com os pontos de sombra gerados pela iluminação centrada no personagem.
Da longa lista de retratos destacam-se “O príncipe Baltasar Carlos com um anão” e a série de pinturas equestres da família real feita para o Salão dos Reinos do palácio do Bom Retiro e que atualmente encontra-se no Museu do Prado: “Retrato equestre de Filipe III”; “Retrato equestre da rainha Margarida da Áustria”; “Retrato equestre do príncipe Baltasar Carlos”; “Retrato equestre do conde-duque de Olivares”.

“Retrato equestre do príncipe Baltasar Carlos”, 1635.


Este retrato eqüestre do príncipe Baltasar Carlos é o mais popular dos realizados por Velázquez para o Salão dos Reinos do palácio do Bom Retiro. A obra estava posicionada sobre uma porta do salão, de tal modo que transmitia a sensação de que o cavalo e seu ginete saltavam sobre quem a cruzasse.
A parte inferior do quadro e a superior da porta estavam flanqueadas por retratos equestres dos pais de Baltasar Carlos: à esquerda, Filipe IV cavalgando para a direita; e, à direita, Isabel de Bourbon marchando em sentido contrário. Os três personagens pareciam se dirigir a um ponto central de encontro.
Retratado com seis anos, o príncipe transmite uma imprópria sensação de comodidade. Seu corpo, em particular a mão esquerda que segura ás rédeas, não parece ter a tensão necessária para lidar com um cavalo a galope e disposto a saltar. Seguramente o pequeno ginete nunca cavalgou nessa situação, e esta é uma das poucas vezes que Velázquez não se ajustou à realidade.
O peito e o ventre do animal têm aparência desproporcional em relação à largura de suas extremidades.
Cabe ressaltar, porém, que nessa época existiam na Espanha cavalos com essas características, fruto do cruzamento de equinos do norte e do sul.
Baltasar Carlos e seu cavalo estão emoldurados por uma magnífica paisagem da serra de Guadarrama, com seus picos nevados. Destaca-se a luminosidade do ambiente, seguramente matinal, mostrada com ágeis pinceladas nas quais predominam as cores verdes, azul, cinza e branco.
A posição central e elevada do príncipe se afirma sobre a grande linha diagonal e dinâmica que descreve o cavalo, em posição quase impossível, assegurando a elevação do príncipe em sua condição de futuro rei.
Com rosto seguro e altivo, o menino apresenta-se ricamente vestido, com ornamentos dourados e verdes, bordados em ouro, botas altas e um gracioso chapéu de feltro e plumas.
O peito e as costas estão cruzados por uma faixa rosa de general, com franjas douradas. A mão direita segura um bastão de comando. Ao incluir esses símbolos, Velázquez indica que o menino é o herdeiro da coroa.
O príncipe, porém, faleceu prematuramente dez anos depois, quando se preparava para se casar com a arquiduquesa Mariana da Áustria.

“Retrato equestre do conde-duque de Olivares”, 1634-1638.


Este impressionante retrato equestre apresenta Gaspar de Guzmány Pimentel, conde-duque de Olivares e valido do rei Filipe IV.
Assim como outros quadros de Velázquez, há dificuldade para estabelecer sua datação. O catálogo do Museu do Prado divulga a data aproximada de 1634. O ano pode ser deslocado para 1638 se, como supõe alguns estudiosos, a obra for uma homenagem à vitória sobre os franceses em Fuenterrabía, embora o conde-duque não tenha participado diretamente do conflito: Olivares era, sobretudo, um político que manejava os assuntos do reino, incluídos os militares, e sabia vangloriar-se pelas vitórias ainda que estivesse longe dos campos de batalha.
Velázquez não costumava assinar nem datar os quadros, consciente de sua qualidade e de que eram inconfundíveis.
Neste retrato, como em “Retrato equestre de Filipe IV”, pintou nos ângulos inferiores esquerdos espaços que parecem destinados à assinatura que nunca estampou.
Essa obra carrega conotações barrocas na apresentação do personagem e ligeiras pinceladas de um impressionista do século XIX no céu e na folhagem da árvore da direita.
Velázquez propõe uma audaz composição em que o cavalo, em curveta, e o ginete aparecem transversalmente em um terreno alto.
Diante deles abre-se uma ampla paisagem com a batalha: logo abaixo da cilha do arreio e da bota à altura das patas erguidas do cavalo, vêem-se, diminutos, outros cavalos e soldados e ao longe a fumaça provocada pela artilharia.
O cavalo e o ginete estão emoldurados pelos emoldurados pelos referidos contornos de vegetação e de céu, em uma combinação de cores composta de verde, azul, cinza, ocre e magenta. A mistura cria uma atmosfera de grande profundidade espacial, bem como de união indissolúvel entre o natural (a paisagem) e o artificial (o ginete e seu cavalo posando nesse lugar).
A figura do conde-duque é impressionante, afinada com seu poder. O cavalo em curveta o revela, pois Olivares é a única personalidade não pertencente à família real à qual Velázquez se atreveu a pintar a cavalo nessa posição.
O valido porta um grande chapéu, couraça negra e reluzente com incrustações em ouro, pomposa faixa de general, botas altas com esporas e o bastão de comando na mão direita.
O olhar desafiante e altivo se volta para o espectador.
A maestria de Velázquez também sobressai na pintura desse soberbo alazão andaluz, cujos músculos tensos e bem marcados, bem como o suor da boca e do pescoço, sugerem a tensão do combate e o domínio de seu ginete.
Além desses, também estão no Museu do Prado “Pablo de Valladolid”; “Francisco Lezcano, o menino de Vallecas”; “O bufão Calabacillas” e “Dom Sebastián de Morra”, entre outros.

“Pablo de Valladolid”, 1633.


Pablo, Pablos ou Pablillo de Valladolid chegou à corte para se integrar à legião de “homens de prazer” que entretinha a família real. Alguns acreditam que ele era bufão; outros apostam que era cômico, como eram denominados os atores na época.
O pintor apresentou a personagem vestido de negro, com gola branca e capa, como exigia a etiqueta.
O rosto emana seriedade, em uma atitude declmatória, como se estivesse representando uma obra. Desse modo, o personagem não seria um bufão que procurava provocar o riso.
Pablo aparece em pé, com o braço direito estendido e as pernas bem abertas, sobre um fundo neutro de cor clara que delimita a silhueta. Velázquez introduziu uma nova e audaz técnica no retrato de pessoas reais, reservada até então para os personagens religiosos que eram representados no céu, como flutuando no ar.
Não há indicação que permita conhecer o espaço real por onde se move o personagem. Velázquez não separa, nem sequer com uma linha horizontal, o fundo do chão, que apenas se intui pelas leves sombras a partir dos pés de Pablo.

“Francisco Lezcano, o menino de Vallecas”, 1636-1644.


Velázquez reiterou neste quadro a habilidade, a sensibilidade e a ternura com que observava anões e débeis, tal como fez desde a fase sevilhana.
Francisco Lezcano, conhecido como Vizcaíno, era um anão disforme, enfermo de “cretinismo com oligofrenia”, de acordo com parecer médico baseado na análise da pintura.
O personagem está sentado no que parece ser a entrada de uma gruta, com vista para a serra de Guadarrama. O pequeno fragmento de paisagem não apresenta a luminosidade de paisagem o pintor oferece em outros quadros com imagens dessa região de Madri. As pinceladas são grossas, com predomínio do cinza.
O ambiente estreito e limitado, similar ao mostrado pelo pintor em vários de seus personagens desse gênero, talvez seja um símbolo do escasso desenvolvimento mental do modelo.
Nota-se a deformação na perna direita esticada para a frente. Entre as mãos atarracadas, Francisco segura algo que pode ser um pincel plano e curto, um pedaço de pão, um fragmento de telha ou cartas de baralho que Velázquem teria dado para o modelo se entreter enquanto posava.
O tabardo, capote com capuz e as calças verdes indicam que Francisco participava de uma caçada, porque essa era a cor da roupa usada na época para praticar caça. As mangas são de um verde azinzentado, com reflexões rosáceos; a camisa no decote do casaco é branca.
O que prevalece e prende a atenção do espectador é a grande cabeça, ligeiramente inclinada para trás, com rosto impassível, inescrutável e indiferente a tudo o que o rodeia, ainda que pareça insinuar um sorriso.
Os olhos mal estão abertos e olham para longe, apesar de o ambiente não ser muito amplo.
As pinceladas são pastosas e refletem o domínio do claro e do escuro, neste caso, baseado na iluminação que foca o rosto de Francisco e se distribui com decrescente intensidade ao longo de seu pequeno corpo e pela gruta.

“O bufão Calabacillas”, 1636-1638.


O nome do modelo, tal como figurava nos registros oficiais, era dom Juan de Calabazas, o sobrenome seria uma alusão à suposta vacuidade de sua cabeça e possivelmente não era o real. Embora fosse um mero bufão, Juan de Calabazas gozava de significados privilégios na corte, como carruagem, mula e retribuição por cumprir suas funções.
A obra sofreu retoques que foram descobertos em 1965. A identidade de quem realizou a repintura é desconhecida. O fato é que a versão adulterada da obra ocultou o estrabismo convergente do personagem, a magreza das pernas e os dedos de um pé posicionados como se estivessem escavando o chão, o que indicaria que o modelo padecia de espinha bífida e paralisia de um ou de ambas as pernas.
Com uma técnica de pinceladas soltas que inclui sombras sutis, o pintor proporcionou ao rosto de Calabazas uma espécie de desfoque fotográfico. Com isso, ressaltou ps pequenos olhos vesgos, como se houvessem sido postos sob pressão em suas grande órbitas. O sorriso, quase impossível de interpretar, pode ser irônico, desafiante, pícaro, de submissão e até beatífico.
Velázquez o representou entre duas cabaças.

Também são notáveis dois retratos de gregos históricos: o fabulista “Esopo” e o filósofo “Menipo”.

“Esopo”, 1639-1640.


A representação do fabulista grego tem reminiscências da fase sevilhana de Velázquez: as pinceladas pastosas e o tratamento de luzes e sombras, sobretudo da roupa. Ao mesmo tempo, revela a agilidade e a maturidade do pintor, o que pode ser percebido no trabalho da notável cabeça do personagem.
O fabulista Esopo, de quem se dizia que era feio, corcunda e gago, viveu entre os séculos VII e VI a.C. Sua trajetória foi marcada por passagens penosas: fora escravo e, embora tenha obtido a liberdade, foi assassinado pelos habitantes de Delfos, ofendidos por suas brincadeiras.
Suas breves histórias com lições de moral, nas quais os protagonistas são animais que falam, foram transmitidas oralmente e começaram a ser publicadas um século depois de sua morte. Atribui-se a Velázquez a intenção de se vingar de Esopo por usar animais para descrever o comportamento dos homens.
Nesse sentido, o aspecto fleumático do rosto de Esopo representa sutilmente os traços bovinos, conforme observa Jonathan Bown. Acima de qualquer mensagem moral do retrato, Velázquez manteve-se fiel a sua postura de não incluir artifícios ou elementos agradáveis e vistosos, procedimento usado na França. Assim, o rosto reflete o ceticismo de quem possui a sabedoria do sofrimento. Porém, o olhar irônico, desdenhoso e inquisitivo não é o de um vencido, senão, pelo contrário, o de quem ostenta sua dignidade com plenitude.
A indigência revelada pela vestimenta, com uma faixa não muito branca, simbolizaria a pobreza que caracterizava muitos filósofos e artistas.
De interpretação mais difícil são os escassos utensílios localizados aos pés do personagem. Esses objetos constituem os únicos elementos capazes de situar o espaço real onde se encontra o fabulista.

“Menipo”, 1639-1640.


O filósofo grego Menipo, viveu no século III a.C., chegou a Fenícia como escravo e, posteriormente, conseguiu comprar a liberdade e a cidadania tebana.
A identificação do personagem é fornecida pelo pintor no ângulo superior esquerdo do quadro, onde se lê MOENIPPVS, versão latina do nome do filósofo.
Menipo enriqueceu com a venda de suas obras, enquadradas na escola cínica, embora seus maiores rendimentos fossem provenientes de empréstimos usurários. Mas perdeu sua fortuna e se suicidou.
Essa conduta parecia contraditória em relação a sua pregação contra a vaidade, a aparência, as diferenças sociais e a escola de Epicuro.
Velázquez mostra o filósofo com a aparência dos muitos mendigos que percorriam as estradas da Espanha, refletindo uma mistura de picardia e dignidade: uma velha e esfarrapada capa de cor escura fechada com a mão esquerda, calças maltrapilhas, botas altas e um chapéu de ampla aba que contribui para assegurar dignidade ao personagem.
O homem está em pé e de perfil com o rosto voltado para o espectador. A iluminação bifocal centra-se na face e no chão que se abre para o espectador. Uma cambaleante e baixa mesa sustenta uma jarra que, quem sabe, representa a fragilidade da vida. Um livro em branco e outro recostado sobre um rolo de papel simbolizariam o desprezo de Menipo pelos ensinamentos filosóficos de seus contemporâneos.
Em 1635, Velázquez fez uma de suas pinturas, uma obra-prima quase incomparável: “A rendição de Breda” ou “As lanças”, que representa a rendição da cidade holandesa de Breda frente às forças espanholas vencedoras, lideradas pelo general Ambrosio de Spínola.

”A rendição de Breda” (“As lanças”), 1635.


Este quadro marcou um ponto de onflexão no tratamento da pintura histórica. Pela primeira vez, um artista deixou de lado os habituais moldes usados nesses temas, que incluíam uma interpretação favorável ao vencedor, personagens solenes e grandiosos, alegorias e, muitas vezes, elementos religiosos ou mitológicos.
Neste caso o pintor se ateve ao real e provável e situou vencedores e vencidos no mesmo plano de dignidade e humanidade. As duas partes sofrem e compreendem os horrores da contenda.
Em “A rendição de Breda”, importam mais as consequências da guerra do que a batalha em si, cujo rescaldo conforma uma impressionante paisagem de fundo.
Velázquez sitou em primeiro plano a relação pessoal e até amável, entre os capitães rivais e seus principais colaboradores. Nesse sentido, oferece-se um verdadeiro estudo psicológico de todos os personagens. A nova visão de um conflito bélico causou admiração na época e se somou aos marcantes fatores artísticos que explicam a justa fama da obra.
Tudo começou em 1624, quando as tropas espanholas sob comando de Ambrosio de Spínola, general de origem genovesa, sitiaram a cidade de Breda, um dos centros da rebelião nos Países Baixos contra a dominação espanhola. As tropas holandesas estavam sob o comando de Justino de Nassau. Dez meses depois, já em alimentos, os holandeses de Breda se renderam. Spínola tratou com cavalheirismo o derrotado Nassau: não permitiu que se inclinasse nem se humilhasse ao entregar as chaves da cidade, autorizou que sua esposa deixasse a cidade em uma carruagem e não obrigou seus homens a entregar as armas.
Dez anos após a batalha, Velázquez recordou a façanha com este quadro.
Velázquez nunca esteve em Breda, mas captou elementos da paisagem local por meio de obras de Peeter Snayers sobre o cerco à cidade. O pintor tampouco conheceu Nassau, embora tenha visto imagens que o representavam. Com Spínola, viajou de Barcelona a Gênova em 1629, e especialistas garantem que o artista fez esboços da figura do general.
A composição do tema se constitui sobre um triângulo. O lado mais longo corresponde à linha horizontal que diivide o quadro e encerra os personagens. O vértice se situa no centro da metade inferior da tela. Em uma elevação à esquerda estão os holandeses: à direita, os espanhóis, em cuja retaguarda se levanta um espetacular conjunto de lanças, quase como uma grade que rompe a continuidade da paisagem, o que rendeu ao quadro a denominação “As lanças”. A disciplina militar pode ser notada pela verticalidade das armas, ainda que quatro estejam inclinadas e conferem um toque humano à cena, insinuando a fadiga depois da vitória.
No centro posicionam-se os dois líderes rivais. Por trás do braço direito de Spínola e sobre a cabaça de Nassau se vêem soldados holandeses em retirada, com lanças e uniformes de cor azul pálido.
Ao fundo, e limitando o triângulo, abre-se um impressionante campo de batalha quase deserto, com colunas de fumaça esverdeadas e acinzentadas, fogo, trincheiras, forificações e cursos de água, tudo coberto por nuvens azuladas.
Se a forma de narrar o tema, já é admirável, também o é a diversidade de técnicas pixtóricas executadas por Velázquez, utilizando as mais adequadas em cada setor do quadro. Assim, a paisagem, plenamente construída para transmitir a sensação de profundidade, mostra pincelada ágeis e leves em algumas ocasiões.
Essa técnica constitui mais uma entre tantas que o impressionismo recolheu de Velázquez mais de dois séculos depois.
O pincel, em compensação, é espesso nas roupagens, salvo na fulgurante armadura de Spínola. A pincelada torna-se longa e compacta no esplêndido cavalo espanhol à direita.
A maestria se completa com a distribuição das luzes, próprias de uma cena ao ar livre, e das sombras que geram personagens, animais e objetos (o capote do soldado holandês em primeiro plano e praticamente aquarelada na indumentária do oficial vestido de branco).
O centro da composição é a modesta chave que Justino de Nassau entrega a Ambrosio de Spínola. Com sua armadura negra e inscrustações douradas, Spínola impede que Nassau se ajoelhe e lhe dirige um sorriso afável e compreensivo. A cena é notável tanto do ponto de vista pictórico quanto pelo valor de humanidade que transmite.

Entre as obras religiosas do período, destacam-se “Cristo Crucificado”, “Santo Antônio abade e São Paulo ermita” e “A coroação da Virgem”, as três conservadas no Museu do Prado.

“Cristo crucificado”, 1632.


Este quadro caracteriza-se pela iluminação proveniente do ângulo superior esquerdo e pelas sombras apenas marcadas sobre um fundo escuro que destaca o personagem.
Nota-se a influência da viagem de Velázquez à Itália, porque mal se enxergam rastros dos claros-escuros tenebristas. Foi mantido o estilo naturalista e é indubitável que o autor usou um modelo vivo e uma cruz real para executar seu trabalho.
Alguns pesquisadores sustentam que, no primeiro esboço, o fundo era ocupado por uma paisagem e que Velázquez teria pintado algumas figuras atrás da cruz.
Diferentemente de outras obras sobre o mesmo tema, este “Cristo crucificado” transmite mais serenidade do que dor.
Seguramente Velázquez imaginou Cristo já morto, com seu sofrimento cessado.
O corpo esbelto, limpo e quase sem sangue nem escoriações não parece estar pendurado na cruz, mas aderido a ela, efeito que é reforçado pelo suporte sobre o qual os pés descansam separados, atravessados por enormes pregos.
O escasso sangue origina-se da coroa de espinhos, de uma pequena ferida do lado direito do peito e dos quatro pregos usados para prender as mãos e os pés.
Quase metade do rosto está coberta pela longa cabeleira do protagonista, representação pouco comum de Cristo na cruz.
Conta-se que, apesar de sua reconhecida fleuma, Velázquez teve um momento de exasperação durante seu trabalho e que, enfadado, arremessou os pincéis contra a tela, manchando a metade direita do rosto.
O resultado de sua ira seria a inspiração para pintar a metade do rosto oculto pelo cabelo.

“A coroação da Virgem”, 1641-1642.


Esta obra de Velázquez foi pintada para o oratório da rainha em Alcázar, de cujo incêndio em 1734 se salvou.
O quadro revela a arte do artista em distribuir diferentes técnicas pictóricas por várias zonas do quadro. Esse fato originou a crença de que se trata de um trabalho dos últimos anos, quando o pintor estava no auge de sua maturidade, e seria dedicado à rainha Mariana da Áustria.
A pincelada é espessa e pesada na ampla e abundante roupagem, mas sabiamente leve e ágil, no tratamento das cabeças e das mãos, em particular da mão direita da Virgem, que delicadamente aponta pra o próprio coração.
O quadro possui composição geométrica baseada em dois losangos sobrepostos. O menor, que encaixa a figura da Virgem, sobrepõe-se ao maior, que inclui as três figuras da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo.
A obra de Velázquez é natural, quase familiar, com as figuras sentadas, com um aspecto que não remete ao misticismo, mas à humanidade dos personagens, como em outros trabalhos religiosos do pintor. Até a insólita calvície do Pai reforça seu modo de interpretar o tema, absolutamente original para sua época.
O Pai e o Filho sustentam sobre a cabeça de Maria uma extraordinária coroa de minúsculas flores iluminada pela luz do Espírito Santo, representado por uma pomba.
A Virgem ascende ao céu, conduzida pelos anjos e os dois pares de querubins.
É prodigioso o desenvolvimento de combinações do ousado colorido usado por Velázquez. Nessa obra, os roxos poderiam conferir um peso extremo. Este, porém, é aliviado por vermelhos pálidos, azuis, verdes, brancos e pela luminosidade que se desprende praticamente de todo o quadro. O que em outra pintura poderia ser contraditório e discordante, nesta adquire plena harmonia.

Em plena maturidade, Velázquez empreendeu em 1649-1651, a segunda viagem à Itália.
O prestígio de Velázquez originou um pedido formal para retratar o papa Inocêncio X. Como o artista estava havia meses sem trabalhar, preferiu primeiro treinar a mão. Para isso, usou seu criado como modelo, o que resultou num belo retrato: “Juan de Pareja”.
Na sequência, superou-se a si mesmo com “Retrato de Inocêncio X”, um autêntico estudo psicológico do pontífice que revela sua complexa personalidade.

“Retrato de Inocêncio X”, 1650.


“Sinfonia em vermelho e branco”, “auge da arte do retrato” e “impressionante por seu realismo” foram alguns dos elogios a este retrato do papa Inocêncio X.
O primeiro a reconhecer a excelência do quadro foi o próprio pontífice, que, ao vê-lo, exclamou: Troppo vero! (Demasiado verdadeiro!). Por isso, a primeira reação de Inocêncio foi recusá-lo, mas finalmente recebeu-o e, como forma de gratidão, presenteou Velázquez com uma valiosa corrente de ouro.
O implacável e insubornável pincel do artista andaluz refletiu uma personalidade inteligente, mas também sinistra, colérica, cruel e desconfiada até a obsessão.
Naquela época, Inocêncio X enfrentava diversas dificuldades: luta contra a corrupção na corte romana, inimizade com o todo-poderoso cardeal Mazarino, cuja política convertia a França em principal potência européia, e a oposição às cláusulas religiosas dos tratados de Westfalia.
O personagem de rosto carnoso e rosado está sentado em um trono vermelho escuro, quase roxo, que se distingue do fundo de mesma cor pelas bordas douradas. Está vestido com sobrepeliz branca e murça e barrete vermelhos.
Com pinceladas de grande desenvoltura, o pintor obtém uma notável conjunção de matizes de vermelhos que destacam o brilho da tela através dos vincos da murça.
Os vermelhos se contrapõem sabiamente à sobrepeliz branca que cai em cascata em direção ao chão.
O papa segura em sua mão esquerda um papel no qual Velázquez pôs sua assinatura.

Esse quadro abriu as portas para outros retratos de personagens da cúria romana, ao mesmo tempo em que Velázquez recebia distinções honoríficas.
Embora alguns pesquisadores sustentem que o primeiro nu profano da pintura espanhola, “A Vênus com seu espelho”, foi pintado por Velázquez após voltar a Madri, a opinião mais aceita é que a notável obra, uma das mais importantes do pintor, teria sido pintada em 1650, durante sua estadia em Roma.

”A Vênus do espelho”, 1648-1650.


Anteriormente, Velázquez havia pintado “Psiquis e Cupido” e “Vênus e Adônis”, temas que requeriam nus; lamentavelmente, porém, ambas as peças foram destruídas no incêndio de Alcázar de 1734.
Com esta Vênus sensualmente deitada em um leito coberto por uma manta cinza-escura, oferecendo as costas ao espectador, o artista volta a demonstrar sua capacidade para transcender seu tempo e renovar as técnicas pictóricas e o modo de compreender seus temas. Basta observar o corpo da jovem para notar que, em relação aos mutantes cânones da beleza feminina, Velázquez vai ao encontro dos ideais contemporâneos e se afasta da longilínea e quase esquelética “Vênus”, de Lucas Cranach, bem como da robusta “Vênus em frente ao espelho”, de Rubens.
De modo geral, isso ocorre porque ao escolher o biotipo da mulher que lhe serviu de modelo, Velázquez foi fiel a sua concepção de humanizar os temas mitológicos e suas personagens.
Quanto à mulher retratada, alguns pesquisadores acreditam que se tratava da atriz Damiana, conhecida por seu comportamento escandaloso. Outros, por sua vez, sustentam a hipótese de que o pintor sevilhano não utilizou modelo.
O quadro mostra Vênus entretida na contemplação de sua beleza diante de um espelho suspenso pelo Cupido. As asas deste são a única referência claramente mitológica da obra; o restante é de uma naturalidade e de um realismo próprios de Velázquez, obtidos graças a sua sensibilidade e à perícia de suas pinceladas. Nesse sentido, assinalou-se que a mitologia não seria o tema central da obra, mas que ela seria revelada pelo retrato de uma pessoa qualquer. Ou seja, o mito desmitificado e voltado de costas, como sustentava José Ortega y Gasset.
A composição do quadro é de aparente simplicidade. A obra propõe uma sábia formulação do espaço. Ordena-se em planos de profundidade e focaliza o espelho, que atua como centro temático, apesar dos traços mal esboçados da imagem refletida. Assim mesmo, para o espelho não apenas convergem os olhares de Vênus e Cupido, como também o do espectador, atraído pela cena quando procura identificar o rosto refletido.
A iluminação está sob medida para apenas produzir sombras. Na obra predominam harmoniosamente os tons rosados, de vermelho, cinza, ocre e branco, além do azul da faixa no peito de Cupido.
A sábia combinação do rosa, vermelho e cinza assegura a descrição pictórica da pele dos dois personagens e confere uma excepcional naturalidade, há escassos antecedentes desse tipo de efeito naquela época. A combinação se completa com o brilhante ocre-avermelhado do cortinado.
As pinceladas são sutis e ágeis, com extraordinária delicadeza e firmeza própria de quem alcançou a plenitude artística. Isso pode ser percebido nos vincos e nas leves sombras da cortina, do lençol e do manto cinza. Ressalta ainda mais na graça, na fluidez e na habilidade com as quais o pincel forma o sedutor corpo de Vênus em seus mínimos detalhes.
O espelho que reflete a imagem de um rosto não parece corresponder à beleza do corpo de sua dona. É o mesmo recurso utilizado pelo pintor em “As meninas” para mostrar os reis. Ou seja, para oferecer ao espectador o que a disposição do quadro manteria oculto.
O peso do quadro se distribui entre Vênus, o Cupido e o espelho. Neste, a pincelada leve e a menor iluminação diluem a imagem refletida e garantem uma sensação de irrealidade. O tamanho da imagem refletida, aliás, parece não fazer jus à distância que guarda do rosto da jovem, o que alimenta especulações de que teria sido repintada ou que pertenceria a outra artista.
No cabelo de Vênus, o pintor utilizou-se de pinceladas curtas e finas, que permitem destacar os matizes dos fios castanhos da mulher. Assim, Velázquez rompe com a tradição das Vênus loiras e com longas cabeleiras soltas.
O Cupido segura o espelho com uma mão sobre a outra; entre elas se estendem fitas rosadas, enfatizadas com tons prateados, de tecido solto e, pintadas com ágeis e finas pinceladas.
Para alguns estudiosos, esse procedimento aproximou a pintura de Velázquez ao conceptismo, movimento literário que se espalhou entre os intelectuais e que o sevilhano conhecia bem. Outros especialistas, por sua vez, atribuem ao pintor intenções mais profundas e complexas.
Assim, por exemplo, Norbert Wolf afirma que “na confrontação entre a visão de costas da deusa do amor e o reflexo de seu rosto [...] Velázquez simboliza a relação entre realidade, imagem e representação. Com os instrumentos de seu ofício, reflete sobre as possibilidades da pintura em relação à realidade e à aparência; ou seja, discorre intelectual e sensorialmente sobre o quadro como meio e sobre o processo de sua elaboração”.

A exemplo de outras obras, “Vista do jardim da Vila Médicis, em Roma”, também conhecida como “A tarde”, a fim de diferenciá-la de seu par, outra tela de mesmo título e chamada “O meio-dia”, apresenta dúvidas quanto à data de confecção. Atualmente, a maior parte dos especialistas, data sua realização em 1650, ou seja, durante a segunda viagem do pintor à Itália. Essa hipótese é sustentada pela liberdade do pincel e dos traços próprios de obras dessa fase de Velázquez.
Além disso, há outra pista: o tablado situado na entrada da gruta da Vila Médicis passava por reparos durante a primeira viagem de Velázquez, conforme documentos guardados nos arquivos romanos.

“Vista do jardim da Vila Médicis, em Roma” (“A tarde”), 1649-1651.


Na época, as paisagens eram desenhadas ao natural ou apenas esboçadas para, no ateliê, serem finalizadas. Muitas vezes, decorria daí a ausência de naturalismo, a feição artificial ou os elementos imaginados das pinturas dos séculos XVII e anteriores. Velázquez abriu um novo caminho para a pintura ao fincar seu cavalete ao ar livre.
Até então, as paisagens serviam de pano de fundo para emoldurar uma história ou um argumento, e a causa e a essência das obras eram os personagens. Já nessa tela surgem quatro pessoas mal esboçadas (três figuras em pé diante da entrada da gruta, fechada por tapumes de madeira, sobre a qual há uma linha de balaústres; outra figura, talvez a de uma mulher, estende um lençol ou uma toalha de mesa), porque o que importa é o meio.
Atrás sobressaem ciprestes que deixam entrever nuvens coloridas pela luz. Particularmente interessantes são os detalhes da descascada parede com uma abóbada que abriga uma estátua.

A gratidão de Filipe IV a Velázquez pelas aquisições realizadas na Itália para decorar o Alcázar foi traduzida em 1652 com sua nomeação para o mais honroso dos cargos a que um pintor poderia chegar: "Aposentador Mor", ou tesoureiro do rei.
No entanto, sua ambição por ascensão social e honrarias, sintetizada pela aspiração de pertencer à nobreza, concretizou-se em 1659, quando recebeu seu maior título de Cavaleiro da Ordem de Santiago. Antes de receber a nomeação, Velázquez teve de contar com o auxílio do rei para se livrar do inquérito sobre sua ascendência. O monarca obteve a exoneração de provas negativas como não ter sangue impuro, ou seja, não ser descendente de judeus. O rei Filipe IV teve que obter uma permissão especial do papa Alexandre VII para conceder a honraria ao artista.
Em seus últimos anos, pintou algumas de suas principais obras. Nelas tornam-se patentes a maturidade do artista e a transposição para a tela de uma inquietude pictórica peculiar daquela fase do pintor: capturar ambientes, cores, movimentos e formas em um momento fugaz de iluminação, como num reflexo que se esgota instantaneamente. Esses trabalhos explicam por que o artista sevilhano é considerado precursor da pintura impressionista.
Velázquez continuou a oferecer seu notável dote de retratista em diversos quadros para personagens da corte.
Durante mais de um quarto de século, Velázquez registrou com notável fidelidade a evolução física e psicológica de Filipe IV.
São autênticas obras-primas as representações do rei, que refletiria não apenas o passar dos anos, mas o peso de um reinado cujo saldo era a perda de territórios e uma profunda crise econômica e social.

“Busto Filipe IV”, 1655.


Neste quadro, Filipe IV encontrava-se acossado pelas crises na península, na Europa e na América e impotente para frear a decadência e a ruína do imenso império legado por seus antepassados.
Velázquez evitou transmitir totalmente essa frustração, exibindo o monarca com altivez e dignidade.
Existem diversas versões do busto de Filipe IV, algumas realizadas por Velázquez e seus ajudantes; outras foram obras do ateliê. A comparação entre esses retratos faz supor que o quadro aqui apresentado é anterior ao exposto em Londres. Na obra da National Gallery, igualmente atribuída a Velázquez, Filipe IV é apresentado com a papada mais pronunciada, o rosto mais gordo, cachos iluminados que anunciam os fios brancos, olheiras pronunciadas, olhos mais apagados e sutis toques de pincel que insinuam a aparição das rugas da velhice.
A análise das diferenças entre os dois retratos aponta que o soberano goza de maior vitalidade na tela do Prado aqui reproduzida.
Do ponto de vista pictórico, o retrato do museu madrilenho reflete melhor as dificuldades que afligiam o estado de espírito do monarca. Ao empregar uma pincelada leve, Velázquez outorgou maior palidez ao rosto do monarca.
No quadro da National Gallery, o traje do rei ostenta botões e bordados dourados nas mangas, e uma corrente de ouro. Já na pintura do Prado, Filipe IV pode ser um homem comum: roupa negra, de seda por seus brilhos, mas sem carregar elementos que o identifiquem como um rei.

O ápice da carreira de Velázquez, porém é “A família de Filipe IV”, de acordo com seu nome original, ou “As meninas”, como é reconhecida mundialmente.
Uma das obras mais elogiadas de toda a história da arte pictórica, a pintura datada de 1656 está exposta no Museu do Prado. Trata-se de um trabalho de extrema complexidade e grandes dimensões.
Em uma tela na qual o próprio artista se mostrou, estão presentes técnicas e recursos utilizados ao longo de sua vida, como refletir imagens através de um espelho e retratar outros quadros. Tudo captado num instante fugaz.
Em síntese, um quadro que é uma mostra completa da formidável genialidade do pintor e que explica por que o artista sevilhano é um dos maiores pintores de todos os tempos.

“As meninas” (“A família de Filipe IV”), 1656.


A pintura mostra uma cena cotidiana e factível na corte do século XVII. A aparência singela, no entanto, revela uma série de perplexidades.
A cena induz o espectador a imaginar que Velázquez começava a pintar os reis Filipe IV e Mariana, quando a infanta Margarida, aos cinco anos irrompeu no ateliê do artista acompanhada de suas damas.
Os críticos especulam que Velázquez estava brincando com a ideia da ambiguidade de imagens, ao incluir muitas versões da arte no retrato, até mesmo seu autorretrato, à esquerda, pintando o rei Felipe IV e sua esposa Mariana, da Áustria, no ato de reproduzir a própria cena no espelho.
Embora ausentes do quadro, os reis têm suas imagens refletidas espelho do fundo, numa larga moldura escura que delimita o espelho no qual aparece o casal real sob uma cortina vermelha recolhida. As figuras estão enevoadas e imprecisas pela sombra desse setor do salão. Ao mesmo tempo, o espelho reflete a iluminação, natural ou artificial, para que Velázquez possa retratá-las. É como se ambos estivessem de costas para o observador e de frente para o pintor, que os observa atentamente, simultaneamente espectadores e protagonistas da cena, imaginando-se a sua presença “do lado de cá” do quadro, ou seja, junto de nós.
O próprio Velázquez ao autoretratar-se enquanto pinta o quadro com o par real, Velázquez propõe o tema do quadro dentro do próprio quadro e é atraído para o interior de um jogo labiríntico entre os espaços interior e exterior. Estes, que são retratados na grande tela que o pintor tem à sua frente, encontram-se exatamente no mesmo lugar de quem contempla a obra, fato que cria a sensação de um ambiente não pintado, mas real e palpável, no qual o observador poderia entrar.
Alegoria da representação. A tela de pintura à esquerda retrata Velásquez pintado (autorretrato). Ele está se olhando para o espelho, talvez o quadro que nós estamos vendo.
As damas de honra são Maria Agustina Sarmiento, que ajoelhada, oferece uma jarra vermelha de barro colocada sobre uma bandeja prateada, e Isabel de Velasco, levemente inclinada, rendendo homenagem à princesa, as meninas.
Na parte direita estão Maribárbola, uma anã alemã que olha para frente, e o anão italiano Nicolas Pertusato, que apóia o pé nas costas do cão tranquilo, formando um grupo em primeiro plano, sob luz mais intensa, próximo de uma janela aberta, mas, reunindo diversos retratos adicionais.
O fato indica a sua familiaridade e despreocupação em relação a tudo o que o rodeia, como se no palácio fosse normal assistir às sessões de pintura de Velázquez apontando para o tema: “Visitantes no estúdio do artista”.
Os retratos dos bobos da corte formam um núcleo importante na produção retratística do pintor e serão muito admirados por Goya e Manet.
Atrás deles, na penumbra, aparecem Marcela de Ulloa, encarregada das damas de honra, e um cavaleiro que não se pode identificar. Na esquerda se encontra a figura de Velázquez com seus instrumentos de trabalho em frente de um grande painel que ocupa todo o ângulo do quadro.
À direita do espelho e ao fundo, uma intensa luz originada de um ambiente contíguo aprofunda a perspectiva e revela uma porta aberta e uma escada de onde o aposentador da rainha, José Nieto Velázquez (talvez parente do pintor), contempla a cena.
Na mesma parede, sobre o espelho, há duas cópias de “Minerva e Aracne”, de Rubens, e “Apolo e Pan”, de Jacob Jordaens, realizadas por Juan Bautista Del Mazo, genro de Velázquez.
A Cruz de Santiago no colete do pintor foi agregada três anos após a conclusão da pintura, quando Velázquez foi nomeado cavaleiro dessa ordem. Uma lenda, porém, conta que a cruz teria sido pintada pelo próprio Filipe IV, ou a mando deste, quando o artista estava no leito da morte.
Atualmente, os especialistas concordam que Velázquez não apenas quis congelar em “As meninas” um instante da vida de palácio, como propôs um enigmático jogo intelectual. Entre suas intenções, estaria hierarquizar sua profissão, então não muito estimada. O posterior acréscimo da Cruz da Ordem de Santiago sobre o hábito do pintor confirmaria, portanto, esse notório anseio do pintor.
Com notável sensação de profundidade, o quadro apresenta perfeita composição, distribuída em espaços bem ordenados que, em seu conjunto, conferem ao grande salão uma atmosfera plena de realismo e proximidade.
Embora as figuras pareçam agrupadas informalmente, na verdade a composição consiste numa série equilibrada de triângulos superpostos. Note a impressão de profundidade obtida pela distribuição dos objetos, das pessoas e do cachorro.
O pintor usou apenas a metade de baixo da tela para os retratos e encheu o espaço acima com uma gama de luz e sombra para produzir a ilusão de espaço.
Verticais e horizontais firmes evitam que o olhar do espectador se perca na sala.
O artista criou formas através de cores e luz, e não com linhas, obtendo imagens inesperadamente reais da figura humana e criar o ambiente.
Destaca-se a distribuição da luz, intensa no primeiro plano, difusa no fundo e forte na porta aberta e no espelha, o que indicaria que os reis estavam iluminados porque posavam.
Note a postura de saudação do grupo das meninas diante do casal real, como também, as pessoas que olham para os reis e os saúdam parecem olhar e cumprimentar também quem as observa.
Tal era sua técnica que todas as imagens parecem igualmente convincentes, tanto as indiretas (reflexos no espelho e quadros dentro do quadro) como as “diretas”.
O artista captou o instante em que quase todo o conjunto de personagens parece estar em ação: um instante antes ou depois a imagem seria substancialmente diferente. É um dos motivos pelos quais “As meninas” é considerado, um antecedente do impressionismo, assim como outras de suas obras.
Essa evolução artística é confirmada pelas seguras e breves pinceladas, em particular no colorido dos rostos e dos cabelos da menina, das jovens e dos anões e nos detalhes de suas vestimentas.
O cromatismo é discreto, embora com ampla variação que se harmoniza com perfeição e na qual se destacam: o branco, cinza e negro dos trajes, com detalhes em vermelho; o bege da tela pintada por Velázquez; e os tons escuros, à menina que a iluminação decanta.
Sem demasiada ênfase, diz-se que este quadro pode ser considerado a obra-prima de toda a história da pintura européia. O seu fascínio provém, em parte, da absoluta verossimilhança e autenticidade visual da cena em cada um dos seus detalhes: desde os cabelos louros da infanta Margarida aos vestidos suntuosos, passando pela densa pelagem do cão em primeiro plano e pela luz que invade o conjunto proveniente da janela à direita.
A obra "As Meninas" teve 44 versões feitas por Pablo Picasso. Já o pintor Goya, também espanhol, homenageou Velázquez colocando-se na obra "A Família de Carlos IV" (1800), e na mesma posição: também à esquerda, pintando um quadro. O pintor Francis Bacon, na década de 1950, fez várias versões a partir do quadro "Retrato do Papa Inocêncio X".

“As fiandeiras” também conhecida como “A lenda de Aracne” admite diversas interpretações.

”As fiandeiras”, 1657.


De início, acreditava-se que a tela mostrava apenas uma oficina de fiação em primeiro plano, atrás da qual havia uma habitação com uma grande tapeçaria ao fundo e três damas a contemplá-la. Investigações demonstraram, porém, que a suposta tapeçaria retrata um tema mitológico, posicionado no último plano e com uma cena real à frente, baseado na lenda de Atena (ou Minerva), e Aracne, uma hábil tecelã.
A deusa castigou a artesã por tecer uma tapeçaria que representava Júpiter, convertido em touro, raptando Europa. Minerva, com capacete, está a ponto de transformar Aracne numa aranha. Se os dois personagens pertencem ou não à tapeçaria é tema de discussão.
A parte inferior do vestido de Aracne indica que não, o que torna a interpretação ainda mais complexa.
É notável o efeito de profundidade estabelecido pelos diversos espaços, a ordenação das figuras e o jogo de luz.

Muito interessante é “A infanta Margarida da Áustria”, a última pintura na qual trabalhou o artista antes de morrer, e que foi finalizada por seu genro e discípulo, Juan Bautista Martínez Del Mazo.

“A infanta Margarida da Áustria”, 1660.


Ao discípulo são atribuídas as mãos e a cabeça. Os especialistas não hesitam em afirmar que o rosto também não foi pintado por Velázquez, porque demonstra uma técnica mais pobre do que a do sevilhano. Do mesmo modo, o cortinado do fundo deve ter sido pintado por Del Mazo, tanto por suas formas como pelas variações cromáticas. Em compensação, pertence a Velázquez a maravilhosa vestimenta da menina, na qual predominam as tonalidades prata e rosa, com numerosos reflexos.
O catálogo do Prado descreve o traje como “valona ajustada ao rosto, caso sem gola com grandes faldas e saia-balão rosa com tecido em prata”.
Velázquez demonstra sua maturidade ao pintar o vestido, os encaixes das mangas, o ramalhete de rosas e violetas da mão esquerda e o lenço de extraordinária transparência pendurado na mão esquerda.
A vestimenta da princesa, ainda que exagerada para os olhos contemporâneos adquire realidade incontestável graças a um pincel solto e leve.

De temperamento suave, Veslázquez levou uma vida sem grandes reviravoltas e de produção artística relativamente pequena: menos de 150 telas suas chegaram aos nossos dias. Calcula-se, porém, que tenha pintado não mais que 200 quadros ao longo da vida, dado seu ritmo compassado.
Morreu em 1660, em Madri, aos 61 anos de idade. Exatamente uma semana depois morria Juana, a filha de seu mestre Pacheco, com quem se casara aos 19 anos.
Seu corpo foi sepultado na cripta do conde de Fuensalida, amigo do pintor, na igreja de San Juan Bautista. A paróquia real de Madri, porém, foi destruída pelas tropas napoleônicas em 1811 e, desde então, ignora-se o paradeiro dos restos mortais do artista.