sábado, 12 de maio de 2012

O ESPELHO, Papéis Avulsos, MACHADO DE ASSIS



Esboço de uma nova teoria da alma humana

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo. 
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lhe um dos presentes, e desafiou o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu: 
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. 
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, -uma conjetura, ao menos. 
- Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... 
- Duas? 
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma... 
- Não? 
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis... 
- Perdão; essa senhora quem é? 
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos... 
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que  conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração: 
- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na
Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom... 
- Espelho grande? 
- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais.
O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu? 
- Não. 
- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não? 
- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes. 
- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! Pérfidos! Mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados. 
- Matá-lo? 
- Antes assim fosse. 
- Coisa pior? 
- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? Era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! -For ever, never! Confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se? 
- Sim, parece que tinha um pouco de medo. 
- Oh! Fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne voistu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala.  Tic-tac, tic-tac.
Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava.
Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo.
Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar.  Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel. 
- Mas não comia? 
- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes.
As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac... 
- Na verdade, era de enlouquecer. 
- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação.
Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia... 
- Diga. 
- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar. 
- Mas, diga, diga. 
- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir... 
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

2 – Análise crítica literária:


2.1 – FOCO NARRATIVO:

“O espelho” inicia-se com foco narrativo em terceira pessoa. Após, tem-se o narrador-personagem, em primeira pessoa e, no parágrafo final, a narrativa retorna a terceira pessoa.

2.2 – TEMPO:

Embora, no início do conto há índices temporais: “uma noite”; “vai senão quando, no meio da noite”; “usou da palavra e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta”, o que domina na narrativa não é o tempo cronológico, não há uma preocupação excessiva em contar a estória, preocupação maior é com a análise, uma dissecante e profunda, em que o escritor procura desnudar a personagem e revelar as suas entranhas.
Debruçado sobre a reconstrução do solitário Jacobina, que vai revivendo um fato que jaz na suas entranhas, através de tempo psicológico, um flash-back.
Durante a estadia da casa de D. Marcolina, realçando a solidão, quando a tia se vai e os escravos fogem, há uma ênfase especial do tempo cronológico, realçado pela onomatopéia “tic-tac” e fazendo analogia com o ritmo temporal da eternidade. A ação se desenrola cronologicamente, cadenciada pelo tic-tac do relógio.
Desde que ficara só, o jovem não olhava para o espelho: “no fim de oito dias deu-me a veneta de olhar para o espelho”. Este é um fato importante na trama e na “defesa de tese” de Jacobina. Após a “ressurreição” do alferes, o tempo é também elemento expressivo: “Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes” (...); no fim de duas, três horas, despia-me outra vez”. 
O tempo vai ajudá-lo a vencer a solidão.
“Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir”...
Nas duas linhas finais, há uma volta ao presente e finda o “flash back”.

2.3 – ESPAÇO:

O espaço, no conto, é bem delineado, a discussão inicial começa em uma casa no morro de Santa Teresa, bairro de classe média no Rio de Janeiro onde, no final do século XIX, residiam muitos funcionários públicos, com sala “pequena, alumiada a velas”; em uma visão macroscópica, o espaço fechado abre-se para o exterior: a luz das velas “fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com suas agitações e aventuras, e o céu em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas”. Este é um espaço neutro, sem drama, antes do episódio, do conflito.
O segundo espaço consiste no sítio, onde Jacobina, fica sozinho, alargando-se para um espaço aberto: “a poeira da estrada e o capinzal dos morros”...

2.4 – TEMAS:

“O espelho descreve a passagem sutil entre níveis de consciência, os quais refletem em níveis sociais: trata-se do processo dialético que compreende a passagem do indivíduo, para o tipo, para a pessoa“ (BOSI, 1999, p. 158 e ss).

O conto de Machado de Assis esboça uma teoria sobre a alma humana, discutindo o tema da consciência trágica como elemento fundamental do pensamento do homem moderno e contém a experimentação formal, a profunda análise psicológica, a atmosfera pessimista e desiludida que marca a segunda fase machadiana, colocando questões de natureza filosófica, como a relação entre identidade e alteridade; a vida como representação ou o mundo como teatro; a presença de uma dimensão incomunicável no ser; a alienação; a vida social condicionando o comportamento, impondo a ausência de liberdade do indivíduo e, como variação deste tema, o da ascensão social como forma de mascaramento.
Esta concepção machadiana sobre a alma ou sobre o sujeito encontra eco em vários pensadores e escritores oitocentistas e, posteriormente, na filosofia existencialista.
Jacobina teoriza sobre a alma, apresentando-a negativamente: o homem tem duas almas, uma inferior: identificada aqui aos processos subjetivos e uma alma exterior (plano objetivo), a qual se relaciona aos processos externos ao homem, isto é, aos valores sociais estabelecidos. O fato de esta estrutura ser marcada pela duplicidade e pela inconstância, já que ambas mudam de natureza e de estado, faz revelar a ausência de unidade da alma, ou seja, o sujeito moderno apresenta-se como um ser vazio. Ou melhor, se por um lado, a sociedade assume a face de um destino, já que ela é uma força de coação, por outro, esta mesma força é informe, instável.
Nessa tensão, o humano apresenta-se desumanizado, conforme observa Raymundo Faoro:

“A separação da vida em dois pedaços, revivendo uma ideia dos céticos gregos, acentua a desumanização, o aviltamento espiritual na existência do contexto social, sinistramente equiparado à cega divindade, ao monstro que vigia o passo ensaiado e presunçoso do ator” (FAORO, 1981, p. 422).

Nietzsche em “O nascimento da tragédia” caracteriza a passagem do estado apolíneo (máscara social, aparência, o visível) ao estado dionisíaco (funções instintivas e inconscientes) como uma ruptura do princípio de individuação e com os limites do “si mesmo” que acarreta uma integração do “eu ao mundo”, propiciando uma visão mais autêntica e profunda da realidade, um mergulho na alteridade.

“(...) nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas” (NIETZSCHE, 1993, § 19, p. 25).

O corpo é, portanto, um campo de forças em eterno conflito. Não há uma unidade subjacente a este dinamismo, pelo contrário, aquilo que se chama sujeito aparece como o resultado deste processo, isto é, o “eu” não é o fator determinante ou casual de todas as ações. Aquilo que aparece como “eu”, enquanto elemento uno e estável, nada mais é do que uma ficção, ele é o reflexo de uma vontade que tenta manter-se estável, indiferente, no interior da multiplicidade das mudanças.
Esta duplicidade é simbolizada pelo reflexo especular, pelo desdobramento de si que a imagem refletida no espelho provoca. Assim, o objeto espelho tem o poder de realizar uma operação metafísica: ele mostra o homem para si e em si mesmo como alteridade. Trata-se aqui do ato de pensar a si mesmo a partir do seu reflexo: pensar a si como “um outro”. Este conflito – ser um e ser outro – é parte mesmo do homem. Mais precisamente, este conflito é o próprio homem. O próprio simbolismo do espelho contém esta duplicidade: trata-se de um símbolo solar-masculino (a inteligência celeste refletida) e um símbolo lunar-feminino (o reflexo da luz solar).
A alma exterior só existe porque os outros existem, isto é, ela vive das relações com o mundo. Esta esfera tende a desumanizar, a transformar o homem num autômato, nela dá-se um aviltamento da interioridade em função das relações sociais. A alma exterior é a determinação do destino. Ora, a esfera da sociedade e da publicidade identifica-se também ao mal, visto ser aquilo que provoca a desagregação do “eu”, e que, assim o fazendo, provoca a dor. A esfera do impessoal tem um poder bi-articulado, pois, tanto nega a possibilidade da autenticidade, quanto a possibilita.
O protagonista do conto, ao revelar esta consciência do ser como gradação de valor, afirma-se como um niilista pleno: ele configura o homem moderno, na medida mesmo em que revela sua impossibilidade de adesão às coisas. Ou melhor, mesmo sua adesão é uma farsa, é uma aparência.
Segundo Alfredo Bosi:
 “O espelho é a matriz de uma certeza machadiana que poderia formular-se assim: só há consciência no desempenho do papel social; aquém da cena pública a alma humana é dúbia e veleitária” (BOSI, 1981, p. 449).
“O espelho” teatraliza a passagem de um estado a outro, da luz à sombra, do determinado ao indeterminado, revelando a duplicidade inerente ao ser, sem priorizar uma esfera em detrimento de outra.
A alma interior revela a mesma inconstância. Um dos momentos mais interessantes do conto é quando Jacobina, estando sozinho, passa pela experiência da negatividade, cujo início se dá com o tédio, que se intensifica cada vez mais, passando pelo nervosismo, o aborrecimento, a angústia. Notemos que esse aprofundamento na solidão é acompanhado pelo som do relógio. “As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade”(ASSIS, 1952, p. 267). Com o relógio, o próprio tempo, em seu efetivar-se, tornar-se concreto.
Jacobina identifica no som da pêndula não apenas o tempo em sua continuidade, mas o abismo do tempo: “Never, for ever! – For ever, never!Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada” (ASSIS, 1952, p. 267).
Há assim, uma relação entre o tempo e a ausência de determinação: todas as ações da personagem aparecerão como vazias de sentido. Enquanto a alma exterior não retorna, Jacobina andava de um lado a outro, saía de casa, voltava para casa, “(...) estirava-me no canapé da sala. Tic-tac tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros da janela, assobiava” (ASSIS, 1952, p. 268).
Notemos que, imerso em si, a personagem, para se ocupar, afugentando o tédio – parece liberar o seu potencial criativo:
“Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como a tia Marcolina, deixava-se estar. (...) Coisa nenhuma. Quando muito, via negrejar a tinta e alvejar o papel “ (ASSIS, 1952, p. 267). Este malogro no ato criativo leva a uma série de ações inúteis, num ímpeto de imaginação: “Recitava versos, discursos, trechos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia de trinta volumes. As vezes, fazia ginástica; outras dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e nada mais. (ASSIS, 1952, p. 269).
Ao descrever as ações físicas de Jacobina, Machado realça-lhes a fugacidade, pois estas ações não estão previamente orientadas, isolando-se num quadro de racionalidade e funcionalidade que as torne significativas. Esta perda do sentido da atividade, sua falta de projeção para um futuro, é gerado do tédio. Este resulta, portanto, desta total imersão no presente. Na ótica do tédio, o tempo aparece como elemento de nadificação: em seu fluir, ele esvazia o sentido de toda e qualquer ação humana, fornecendo à vida um caráter de insignificância. Esta compreensão machadiana se aproxima a Schopenhauer. Para o autor de “O mundo como vontade e representação”, a vida contém uma espécie de círculo vicioso, originado na dinâmica entre o desejo-satisfação-tédio-desejo.  Ao perceber este círculo, o homem se conscientiza da inutilidade e do absurdo da vida. Assim, aquilo que, no tempo, eternamente retorna, é o vazio, o nada.  Para Schopenhauer, o desejo funda-se na dor, já que consiste na expressão de uma carência, mas, somente esta carência é positiva, pois, a realização do desejo, enquanto supressão da dor, ao dar origem à satisfação, lança o ser na pura negatividade, já que aquilo mesmo que permitia toda e qualquer relação deixou de existir. Ora é a dor que possibilita tal relação, daí a sua positividade: o homem é mais sensível na dor, ela o constrange a ir mais fundo em si mesmo, em suma, a dor mobiliza. Assim, na situação oposta, a ausência de mobilização provocará a insensibilidade. E o que ocorrerá com a personagem Jacobina: “Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico” (ASSIS, 1952, p. 267).
Ao mergulhar em si mesmo, Jacobina perde sua humanidade. Assim, por ironia, aquela que seria a dimensão mais verdadeira da existência, a alma interior, a subjetividade, dimensão esta que, em sua autenticidade se resguardaria da mentira social e do constrangimento do impessoal, esta dimensão mostra-se também como um grande vazio: o sujeito não é nada, e o tédio foi o princípio de uma experiência que, quando intensificada, revela o ser como pura negação. Mas, esta insensibilidade também se apresentará no lado oposto, isto é, com a alma exterior.
Jacobina enquanto está cercado pelos prazeres – a atenção plena, os cuidados, os elogios – a personagem vai se tornando insensível, a ponto de o alferes eliminar o homem. Ora, não devemos pensar que o jovem alferes é uma vítima da sociedade. Pelo contrário, ele sente-se mesmo seduzido por todas aquelas atenções, deixando-se tomar por sua máscara social, devido mesmo à sua própria vaidade.
No fundo, Jacobina é movido pela aspiração a distinguir-se, elemento fundamental da vida como vontade de poder. Jacobina percebe que se torna mais forte ao ser alferes e submete-se a este jogo, até eliminar em si o que restava do homem.
A eliminação da humanidade leva a uma perda da relação consigo: Jacobina não experimenta a si como positividade, já que não sofre. Por não sofrer, ele também deixa de compreender ou perceber o que lhe é externo: “As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes” (ASSIS, 1953, p. 264). Ora, Jacobina recai em si justamente quando está totalmente “fora de si, em que é plenamente sua máscara. Esta queda é precedida por uma falha.
A vaidade de Jacobina será usada contra ele mesmo. Ora, uma das funções da Guarda Nacional era a de fiscalizar os escravos, mas a personagem desvia-se de sua ocupação, havendo uma inversão dos valores: a farda prende a personagem, pois este, olhando para si, não vê as intenções profundas do outro, possibilitando a fuga dos escravos da fazenda. Estes escravos utilizam-se da própria força de Jacobina – o reconhecimento da importância de seu cargo – para dominá-lo. Este domínio se faz também a partir de uma máscara de fraqueza, já que a subserviência, a submissão e a obediência dos escravos serviram como disfarce para velar a intenção da fuga.
A falha de Jacobina, a vaidade, o privou do último resquício de sua alma exterior. E justamente quando Jacobina se vê privado dos seus hábitos, de sua alma exterior, que ele irá experimentar a dor, isto é, terá consciência de si mesmo e, este sentir a si, tornando-se insuportável, o levará sempre a querer “sair de si”, ou seja, ele irá desejar profundamente o retorno do outro.
Se a máscara de alferes é mais forte que a do homem, posto que a elimina, ela também é o lugar da fraqueza, já que sua força depende de um elemento externo, mais precisamente, o olhar do outro. Assim sendo, quando se pensa que o homem por trás da máscara seria o elemento de sustentação da unidade, revela-se o pior: o homem não é absolutamente nada. A interioridade é pura possibilidade de ser, mera disponibilidade que, como tal, é pura indeterminação.
No entanto, no conto, todas as ações revelam-se vazias de sentido pelo fato de não haver um outro que as reconheça. O problema do outro, como vimos, reside em sua inconstância radical. Isto é, o “outro” configura e agrega o homem e sem a mediação do “outro” (da sociedade), o ser que é pura possibilidade de ser se perde no vazio. Assim a ausência de liberdade apresenta-se como a condição da vida: para vir a ser, é necessário que o homem assuma até mesmo aquilo que ele não é, assuma uma máscara. Mas, essa máscara não é um “outro” totalmente diferente daquele que seria o “eu” original, pelo contrário, ela se vincula ao “eu”. O “eu” é algo situado entre o si mesmo e a sociedade: alteridade radical.
Dessa forma, a teoria da alma é irônica: não há alma alguma, já que o ser da alma é múltiplo. A única existência necessária é a da opinião, a da alma exterior, em suma, a aparência. O papel social forma assim a percepção e a consciência e, do mesmo modo como desagrega, ele também agrega. No conto, o espelho é, por assim dizer, um símbolo: ele é o “outro” que integra Jacobina a si mesmo e recupera sua alma exterior.
“Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros” (ASSIS, 1952, p. 271). Assim, após a negatividade radical, as coisas retornam a seu ser. Mas, para voltar a si e poder conviver novamente, Jacobina joga com sua aparência: ele ensaia as suas ações, como um ator ensaia os gestos da personagem.  Assim, Jacobina poderá ser ele mesmo sendo “um outro”.
Ainda jovem Jacobina percebeu os mecanismos do jogo social, podendo, enquanto comediante distanciar-se criticamente. Como consequência, podemos especular que, quando adulto, Jacobina não se envolve mais com nada, limitando-se a observar. Ou seja, Jacobina penetrou na essência dolorosa da vida, isto é, no abismo dionisíaco, aprendendo o mal da existência.


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PINTURA METAFÍSICA: GIORGIO DE CHIRICO


I – DADOS CRONOLÓGICOS:
 
Entre 1910 e 1915, aconteceu primeiramente em Florença e depois, em 1911, em Paris.


II – CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL:

A Pintura Metafísica não teve as pretensões proselitistas nem a agressividade do Futurismo, mas esta pintura criou uma escola durante a I Guerra Mundial.


III – CARACTERÍSTICAS:

A Pintura Metafísica é de misteriosa serenidade, arquitetônica, voluntariosamente quieta, de volumes e formas extremamente simples, com certa ingenuidade configuradora de também simplíssimos espaços perspectivos, especificando ostensivamente os horizontes e as linhas de fuga, dentro de um dominador hálito intelectual, esteticista e onírico; sentindo-se densa a respiração do humano, mas muito frequentemente os homens e as mulheres ausentes; os donos de tais âmbitos eram os manequins ou algumas estátuas. Tudo profundamente aferrado ao passado e muito moderno.
A Pintura Metafísica foi, sem dúvida, um sensível e inteligente esforço para manter por todos os meios ao seu alcance o brilhante humanismo europeu italiano em altíssima medida, condenado a desaparecer perante o homem novecentista, apaixonado pelas máquinas com o ardor que proclamaram os Futuristas.
  

IV – GIORGIO DE CHIRICO (1888-1978)

A – VIDA:  



“O que posso amar senão o enigma?”

                        A frase acima, inscrita em latim em um autorretrato, de 1911, Giorgio De Chirico sintetiza seu pensamento e confere à sua obra uma espécie de epíteto.
                        O artista nasceu em Volos, na Grécia e conviveu com as lendas da mitologia grega da sua região, que mais tarde, influenciará suas pinturas. Os heróis como Ulisses, Orfeu e Orestes e as musas como Ariadne, além dos viajantes e as viagens lendárias, serão fontes de inspiração em suas obras.
                        De Chirico estudou em Munique e conheceu a pintura de realismo mágico e sombria de Arnold Böcklin, com seus temas alegóricos, e o trabalho de Max Klinger de cunho simbolista, que se apresentaria ao pintor como uma ligação ao surrealismo mais tarde.
                        Viveu em Turim e encantou-se com a arquitetura da cidade, tomada por construções com arcos e galerias de passagem, praças planejadas com exatidão e a filosofia de Nietzsche.  
                        A partir de 1911 estabeleceu-se em Paris, frequentou os salões de arte e conheceu Picasso e o poeta Apollinaire.
                        Com a saúde debilitada, passou longa temporada internado em um hospital de Ferrara.
                        Conheceu Carlo Carrà, Fillippo di Pisis e Giorgio Morandi, com quem lançariam entre os anos de 1917 e 1919 as bases do que viria a ser a Pintura Metafísica.
                        Num texto de 1927 publicado em um boletim da Galeria L’Effort Moderne, de Paris, De Chirico explicava simbolicamente sua inspiração:

                        “É estranho ver móveis como camas, guarda-roupas, poltronas e mesas jogados numa estrada, em um cenário que normalmente não são vistos. Parecem ganhar uma nova luz,
                        investidos de uma estranha solidão, o que gera uma intimidade entre eles”.

                        Num contexto mais amplo, a proposta da metafísica era justamente não subverter nada, mas fazer ver o que estava presente, mas escondido. Ao tentar registrar o que é imperceptível aos olhos, criou uma estética que misturava sonho e realidade.   Sua visão da realidade sofreu influência de filósofos do século XIX, como Schopenhauer e Nietzsche.

                        Aclamado pelos surrealistas como precursor do movimento, pintava fantasias de pesadelo 15 anos antes da existência do Surrealismo.

“Eles ensinaram, antes de mais nada, o profundo significado do absurdo e como tal absurdo se pode traduzir em arte”, dizia.

Sua inovação, entretanto, não obteve reconhecimento imediato e teve de conviver com a rejeição da crítica.
Na década de 1920, De Chirico distanciou-se da pintura metafísica por um ideal de arte clássica, em muito inspirado por uma antiga influência barroca e artistas como Rafael e Rubens. Chegou a negar a pintura moderna, o que levou André Breton afirmar que De Chirico morrera em 1919.
No final dos anos 1930, o artista se envolveu com o movimento fascista e transformou integrantes do regime de Benito Mussolini, em personagens de suas obras.
As dúvidas sobre a trajetória de De Chirico envolvem controvérsias. Contam que ele vendia cópias de seus trabalhos feitas por ele mesmo, denunciava como falsificação apenas por não simpatizar com seus donos. Para muitos, porém, continuou respeitado e um pintor de grande conhecimento, a quem recorrerão diversos aprendizes, ente eles o gaúcho Iberê Camargo, nos anos 40.
No fim da vida, após transformar seu estilo várias vezes, apoiando-se em referência que iam do barroco ao impressionismo, o artista retornou as ideias que o consagraram na juventude. Um dos destaques é “O retorno de Ulisses”, 1968, obra que retrata um homem remando num mar dentro de um quarto; uma referência ao fim da carreira do artista.


B – CARACTERÍSTICAS E OBRAS:


DE CHIRICO criou um inconfundível mundo capaz de nos lembrar os espaços arquitetônicos da distante Antiguidade de gregos e romanos, sem que faltasse um espírito oculto do também distante medieval.
O artista colocou-se como exterior à temporalidade, como negação do presente, da realidade natural e social, como também, retornou à ordem clássica da arte.
Retratando medos irracionais infantis, DE CHIRICO é famoso por suas sinistras paisagens urbanas com arcadas desertas, iluminação oblíqua; sombras agourentas; forte jogo de luz e sombra; cores reais representando figuras destituídas de alma; ambientes oníricos e manequins anônimos traduzem mistérios, sentimentos, estranhezas e emoções.
A perspectiva oblíqua e as praças quase desertas, habitadas por figuras mínimas, despersonalizadas, transmitem ameaça.
Sob o imperativo de uma geometria pouco asséptica, totalmente construtora, a pintura metafísica retrata um mundo com uma onda nostálgica do passado e edificado como se tal sonho ainda fosse possível.
O “metafísico” (o que está além do sensorial) às vezes é elevado à categoria de metáfora do homem, acumulando prismas, esquadros, elementos verticalizados que se arrematam com uns ombros sem braços e um crânio oval sem rosto; enfim, uma insólita estátua.
Segundo o artista, para que uma obra de arte fosse imortal, teria que abandonar por completo o limite do humano.



Em "O enigma de uma tarde de outono", 1910, De Chirico retrata a Praça Santa Croce com extremo subjetivismo. A fachada da igreja católica é substituída por linhas gregas; no centro, onde possivelmente teria uma fonte, surge uma estátua apolínea (Dante?) de costas e sem cabeça e um mastro de navio é visto atrás de uma parede, tudo envolvido por cores pálidas e em grande melancolia.  



"O enigma do oráculo", 1910.


                                          "L'enigma dell'ora", 1911.



   "Nostalgia of the infinite", 1913.



"O mistério e a melancolia de uma rua", 1914.



"Canto d'amore", 1914.



“Portrait Prémonitaire de Guillaume Appolinaire”, 1914.


                         "Ettore e Andromaca", 1917.









segunda-feira, 7 de maio de 2012

MANOEL DE BARROS: VIDA, OBRAS E CARACTERISTICAS


“Meu fado é de não entender quase tudo,
Sobre o nada eu tenho profundidades”.

I – VIDA:

“...um dos mais doces privilégios dos poetas:
            exercer idiotices.”

MANOEL Wenceslau Leite de BARROS, entortador de palavras, poeta que tem um abridor de amanhecer, nasceu em Cuiabá-MT, em 19 de dezembro de 1916 e mudou-se para Corumbá-MS, onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense.
Nequinho, como era chamado carinhosamente pelos familiares, cresceu livremente, em uma fazenda no Pantanal. No derradeiro texto do “Livro das Ignorãças”, 1993, “Retrato falado”, Manoel confessa:

“Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,
  Aves, pessoas humildes, árvores e rios.
  Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.”

Estudou num colégio interno em Campo Grande, e depois no Rio de Janeiro. Aluno medíocre que descobriu o prazer pela literatura através dos textos do padre Antônio Vieira:

“A frase para ele era mais importante que a verdade, mais importante que a sua própria fé. O que importava era a estética, o alcance plástico. Foi quando percebi que o poeta não tem compromisso com a verdade, mas com a verossimilhança. [...] descobri que servia era pra aquilo: ter orgasmo com as palavras”.

Aos dezoito anos, entrou para a Juventude Comunista e escreveu o seu primeiro livro, “Nossa Senhora de minha escuridão”, que embora não fora publicado, salvou-o da prisão. Manoel havia pichado “Viva o Comunismo” numa estátua. A polícia foi buscá-lo na pensão onde morava. A dona da pensão o defendeu, afirmando que o menino era um poeta e que havia até escrito um livro. O policial pediu que provassem, em seguida, levou o rascunho de “Nossa Senhora de minha escuridão” e deixou Manoel livre.
Quando Luiz Carlos Prestes foi libertado, após dez anos de prisão, Manoel esperava uma represália do líder contra o que os jornais comunistas chamavam de “o governo assassino de Getúlio Vargas.”
No entanto, após ouvi-lo apoiando Getúlio, o mesmo Getúlio que entregou sua mulher, Olga Benário, aos nazistas, decepcionou-se profundamente com o Partido.

“(...) Não aguentei. Sentei na calçada e chorei. Saí andando sem rumo, desconsolado. Rompi definitivamente com o Partido e fui para o Pantanal".


Manoel ficou pouco tempo no Pantanal. A ideia de se tornar fazendeiro ou trabalhar num cartório local não o convenciam e o poeta viajou ao exterior. Passou um tempo na Bolívia e no Peru e, depois seguiu para Nova York, onde morou um ano. 




Fez curso sobre Cinema e sobre Artes Plásticas no Museu de Arte Moderna. Picasso, Chagall, Miró, Van Gogh, Braque reforçaram a sua busca de liberdade.
Entendeu então, que “uma árvore não seja mais apenas um retrato fiel da natureza: pode ser fustigada por vendavais ou exuberante como um sorriso de noiva” e sentiu que “os delírios são reais em “Guernica”, de Picasso”.
Sua poesia sofreu, na época, influências de quadros e filmes: Chaplin por sua despreocupação com a linearidade; Fellini; Akira Kurosawa, Luis Buñuel e, entre os mais novos, o americano Jim Jarmusch.
De volta ao Brasil, conheceu a mineira Stella, no Rio de Janeiro e casaram-se em três meses.  Tiveram três filhos, Pedro, João e Marta e, até hoje Manoel a chama de “guia de cego”, pois quando a conheceu, o poeta-advogado estava totalmente desorientado.
Em 1949 retornou para o Pantanal, para tomar conta da fazenda deixada pelo pai.
Manoel de Barros, embora tenha vivido em metrópoles da América e da Europa, a matéria prima de sua obra circunscreve-se ao chão pantaneiro.

II – OBRAS:

Manoel de Barros publicou o seu primeiro livro de poemas em 1937, “Poemas concebidos sem pecado” concebido artesanalmente por vinte amigos, numa tiragem de vinte exemplares e mais um, que ficou com ele.
Depois vieram outros, entre os quais, “Compêndio para uso dos pássaros” (1961), “Gramática expositiva do chão” (1969), “Livro de pré-coisas” (1985), “O guardador de águas” (1989), “Concerto a céu aberto para solos de ave” (1991), “O livro das ignorãças” (1993), “Livro sobre nada” (1996) e “Retrato do artista quando coisa” (1998).
Pelos títulos das obras, o leitor percebe a afinidade entre o poeta e o chão, entre o poeta e a ave, entre o poeta e a natureza, entre o poeta e as coisas, enfim, entre o poeta e ...o nada.
A poesia de Manoel de Barros passou a ser amplamente conhecida a partir da década de oitenta, embora ela já tenha tido o reconhecimento de Mário de Andrade e de Guimarães Rosa desde a década de quarenta, que comparou os textos de Manoel a um “doce de coco”.
Millôr Fernandes postou as poesias de Manoel de Barros, em suas colunas nas revistas “Veja”, “Isto é” e no “Jornal do Brasil”, afirmando que a obra do poeta era “única, inaugural, apogeu do chão.” Enquanto que, o escritor João Antônio declarou que a poesia de Manoel vai além: “tem a força de um estampido em surdina. Carrega a alegria do choro.”
Outros fizeram o mesmo, entre eles: Fausto Wolff, Enio Silveira e Rubem Alves. Segundo Geraldo Carneiro: “Viva Manoel violer d’amores violador da última flor do Lácio inculta e bela. Desde Guimarães Rosa a nossa língua não se submete a tamanha instabilidade semântica”.
Também críticos debruçaram sobre o texto manuelino, como Berta Waldman, Lúcia Castello Branco e Renato Nésio Suttana, que escreveu uma dissertação sobre a “poética do deslimite” de Manoel.
Manoel de Barros foi também comparado a São Francisco de Assis, pelo filólogo Antônio Houaiss, “na humildade diante das coisas. (...)”
Manoel, o tímido Nequinho, se diz encabulado com os elogios que "agradam seu coração".
Os intelectuais iniciaram, através de tanta recomendação, o conhecimento dos poemas que a Editora Civilização Brasileira publicou, em quase a sua totalidade, sob o título de “Gramática expositiva do chão.”
Manoel foi agraciado com o “Prêmio Orlando Dantas”, em 1960, conferido pela Academia Brasileira de Letras ao livro “Compêndio para uso dos pássaros”.
Em 1969 recebeu o “Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal”, pela obra “Gramática expositiva do chão” e, em 1997, o “Livro sobre nada” recebeu o “Prêmio Nestlé”, de âmbito nacional.
Em 1998 recebeu o “Prêmio Cecília Meireles” (literatura/poesia), concedido pelo Ministério da Cultura.
Hoje Manoel de Barros é reconhecido nacional e internacionalmente como um dos mais originais do século e mais importantes do Brasil.
O poeta afirma que o anonimato foi “por minha culpa mesmo. Sou muito orgulhoso, nunca procurei ninguém, nem frequentei rodas, nem mandei um bilhete.
Uma vez pedi emprego a Carlos Drummond de Andrade, no Ministério da Educação e ele anotou o meu nome. Estou esperando até hoje”.
E, conclui que não perdeu o orgulho, mas a timidez parece cada vez mais diluída. Ri de si mesmo e das glórias que não teve.
“Aliás, não tenho mais nada, dei tudo para os filhos. Não sei guiar carro, vivo de mesada, sou um dependente”. [...] Os rios começam a dormir pela orla, vaga-lumes driblam a treva. Meu olho ganhou dejetos, vou nascendo do meu vazio, só narro meus nascimentos.”

OBRAS:
1937 — Poemas concebidos sem pecado
1942 — Face imóvel
1956 — Poesias
1960 — Compêndio para uso dos pássaros
1966 — Gramática expositiva do chão
1974 — Matéria de poesia
1982 — Arranjos para assobio
1985 — Livro de pré-coisas (Ilustração da capa: Martha Barros)
1989 — O guardador das águas
1990 — Poesia quase toda
1991 — Concerto a céu aberto para solos de aves
1993 — O livro das ignorãças
1996 — Livro sobre nada (Ilustrações de Wega Nery)
1998 — Retrato do artista quando coisa (Ilustrações de Millôr Fernandes)
1999 — Exercícios de ser criança
2000 — Ensaios fotográficos
2001 — O fazedor de amanhecer
2001 — Poeminhas pescados numa fala de João
2001 — Tratado geral das grandezas do ínfimo (Ilustrações de Martha Barros)
2003 — Memórias inventadas - A infância (Ilustrações de Martha Barros)
2003 — Cantigas para um passarinho à toa
2004 — Poemas rupestres (Ilustrações de Martha Barros)


III - CARACTERISTICAS:


Numa entrevista concedida a José Castello, do jornal “O Estado de São Paulo”, em agosto de 1996, ao ser perguntado sobre qual sua rotina de poeta, respondeu:

“Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo “lugar de ser inútil”. Exploro há sessenta anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc.
Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler “Vozes da Origem”.
Gosto de coisas que começam assim: “Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem”. Está no livro “Vozes da Origem”, da antropóloga Betty Midlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais.
Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento.”




Manoel de Barros conta com uma consistente fortuna crítica, mas o melhor comentário sobre sua poesia é fornecido por “ele próprio”, seja em entrevistas, seja nos versos que escreveu – metapoéticos, “desexplicando” o próprio trabalho literário.
Segundo ele, “ao poeta faz bem desexplicar”, ou melhor, o entendimento de sua poesia não passa pelo crivo cerebral, pois “ não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético senão que por instinto linguístico”. E, num “despoemamento”, sintetiza sua concepção de uma pedagogia para o entendimento poético:

Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento
Do corpo;
E o da inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo.
Poesia não é para compreender, mas para incorporar.
Entender é parede; procure ser uma árvore.

A matéria prima da obra de Manoel de Barros é a “desarrumação”. No “Livro sobre nada”, ele escreve:

“A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto
  Que ela expresse nossos mais fundos desejos.”

Assim como o espaço do Pantanal é semovente, primitivo, fluído, em permanente decomposição e renovação, a poética de Manoel de Barros é uma decomposição lírica, estruturada por uma escritura fervilhante, vital, em que morte e vida pulsam, pululam, ululam e silenciam elementos do mundo vegetal, animal e mineral, como se lê no “Livro das Ignorãças”:

Para entrar em estado de árvore é preciso
Partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer
Em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
O mato sair na voz

Hoje eu desenho o cheiro das árvores. (I-IX)

Adoecer de nós a Natureza
- Botar aflição nas pedras
(Como fez Rodin). (I-XI)

Renato Nésio Suttana, analisando a obra do poeta, estabelece que, em sua “desarrumação”, ocorrem as noções entrelaçadas de repouso e mobilidade, promiscuidade e fecundidade, intransitividade e gratuidade.
Seus poemas são realizados através da técnica da colagem, “que impede que o texto se organize de modo discursivo, desestabilizando conexões do tipo lógico”. Assim, termos como “desvio”, “desarranjo”, “erro”, associados a elementos da semântica do “ínfimo”, do “restolho”, do “insignificante”, facilitam a inserção do leitor no mundo poético manoelino, com suas personagens fantásticas, como Felisdônio, Ignácio Rayzama, Rogaciano, Apuleio, Bernardo e Andaleço, bugres que andam em desvios, como o poeta escreve, desviando da trilha do senso comum.

Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
Estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
E os araticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma. (III-VI)

Mário de Andrade já dizia que “só pode errar quem conhece o certo”. Manoel de Barros, grande conhecedor da língua portuguesa, entende que a poesia mora nas transgressões semânticas e sintáticas:

1. Usa símiles surpreendentes.

Meu ser se abre como um lábio para moscas. (II-1.7)

2. Recorre a paradoxos.

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios. (I-1)

3. Propõe conceitos poéticos em que o tempo se alucina na relação entre flora e fauna.

No Tratado das Grandezas do ínfimo estava
Escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
Dálias.
E quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
E quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras. (I-IV)

4. Intertextualidade com gênios da pintura, divinizando natureza e arte.

Um girassol se apropriou de Deus foi em
Van Gogh. (I-VIII)

5. A metalinguagem será um expediente constante, relacionando “criança”, “poeta” e “delírio”.

A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
Verbo, ele delira. (I-VII)

6. A metapoesia convoca lírios para as figuras de linguagem.

Dobravam-se lírios para os meus tropos. (III-XIII)

7. A poética do defeito relaciona vegetal e animal.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
Modificar os seus gorjeios. (I-XII)

8. A concretização do abstrato bem como a proximidade entre o “sublime” e o “grotesco” lembram o Barroco.

Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o
Abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de
Um primal deixe um termo erudito. Aplique na
Aridez intumescências. Encoste um cago ao
Sublime. E no solene um pênis sujo. (I-XV)

9. A “volúpia” com a palavra, com as imagens, erotiza a poética manoelina.

Entra um chamejamento de luxúria em mim:
Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda
A espessura de sua boca! (I-XVI)

(...) Sonhava-se muito com pererecas e com mulheres. (III-X)

10. A arte de “desnomear” cria inesperados efeitos semânticos.

Rede era vasilha de dormir. (III-III)

Me mantimento de ventos. (II-3.5)

11. A enumeração caótica reúne objetos díspares, de configuração surrealista. Sob a aparência surrealista, a poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade.
Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo.

Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios – e
1 esticador de horizontes. (III-XI)

Extremamente sensorialista, os sentidos estão sempre convocados, muitas vezes misturados.

Conheço de palma os dementes de rio. (III-II)

(...) Era uma voz pequena e azul. (III-IV)

Diviso ao longe um ombro de barranco. (II-3.6)

Um perfume vermelho me pensou. (II-3.5)