domingo, 20 de maio de 2018

“A LEGIÃO ESTRANGEIRA”, CLARICE LISPECTOR

O conto “A legião estrangeira”, é relativamente longo, narrado em primeira pessoa pela protagonista, que exerce os papéis de mãe e dona de casa.
Trata-se de relato não-linear, construído através de rememorações que interligam passado e presente constituindo a teia que dá forma ao enredo.
A trama conta com poucas personagens e é ambientada principalmente no interior da casa da protagonista.

A narrativa se divide em dois momentos vivenciados pela narradora, distantes no tempo e no espaço, que se unem através de um elemento comum: um pinto.
Os dois momentos entrecruzam-se quando, em vésperas de Natal, conforme declara a narradora, alguém “que queria ter o gosto de me dar coisa nascida” (LISPECTOR, 1999, p.95), lhe presenteou com um pinto.
A graça do pinto, “pegou em flagrante” (LISPECTOR, 1999, p.95) a família formada pelo pai, a mãe (narradora) e quatro filhos. Desse modo, a família se reúne enlevada, curiosa e embaraçada ao redor do pinto, “coisa que por ter nascido se espanta” (LISPECTOR, 1999, p.97).

O conto se inicia com a protagonista lembrando-se de Ofélia e seus pais, que conhecera, mas há muito tempo não via mais.
“Estou tentando falar sobre aquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim, e de quem me ficara apenas uma imagem esverdeada pela distância. Meu inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de ter aparecido em casa um pinto”

O que motiva a narradora-protagonista a retomar o caso é o fato de ter aparecido em sua casa outro pinto de forma inesperada e enigmática, causando surpresa, admiração, integração e sensibilidade ao seio familiar.
“Mas o Natal é amanhã, disse acanhado o menino mais velho. Sorrimos desamparados curiosos”.
Esse fato desencadeia um clima de comoção familiar em que todos os membros voltam-se em torno de um elemento novo, capaz de provocar dúvidas, indagações, reflexões, implicando na reestruturação emocional das pessoas, que contemplam a fragilidade do animal.
A cena se desenvolve, de forma aflitiva, por meio da consideração do desamparo na vida:
O menino menor não suportou mais:
“- Você quer ser a mãe dele?
Eu disse que sim em sobressalto. Eu era a enviada junto àquela coisa que não compreendia a minha única linguagem: eu estava amando sem ser amada. ” (LISPECTOR, 1999, p. 98).
É importante observar que crianças e adultos vivenciam de modo diferenciado o encontro com o pinto, pois em meio à aflição deste, os adultos ficam resignadamente constrangidos, acreditando que “as coisas são assim mesmo”, ao passo que as crianças esperam destes uma atitude salvadora, como esclarece o excerto abaixo:
“Nós, os adultos, já teríamos encerrado o sentimento. Mas nos meninos havia uma indignação silenciosa, e a acusação deles é que nada fazíamos pelo pinto ou pela humanidade. A nós, pai e mãe, o piar cada vez mais ininterrupto já nos levara a uma resignação constrangida: as coisas são assim mesmo. [...] Se nunca havíamos conversado sobre as coisas, muito mais tivemos naquele instante que esconder deles o sorriso que terminou nos vindo com o piar desesperado daquele bico, um sorriso como se a nós coubesse abençoar o fato de as coisas serem assim mesmo, e tivéssemos acabado de abençoá-las” (LISPECTOR, 1999, p.96-97).
Assim, logo no início do conto, nos deparamos com o sentimento de indignação dos filhos da narradora, que de tão agudo desconcerta os adultos presentes na cena e, posteriormente, no segundo momento, nos deparamos com a menina Ofélia, sempre autoconfiante, altiva, que desconhece as belezas do mundo infantil, enquanto tem amplo domínio sobre sentimentos e/ou comportamentos comumente atribuídos aos adultos.
Ofélia era uma criança de “oito anos altivos e bem vividos” (LISPECTOR, 1999, p.100) e que pertencia a uma família trigueira.
A narradora percebia-os de forma estrangeira, distante no tempo e no espaço, embora o sobrenome da família indique o contrário.
A caracterização do núcleo familiar inclui também o orgulho (ou o martírio oculto) como traço decisivo:
“O pai agressivo, a mãe se guardando. Família soberba” (LISPECTOR, 1999, p. 99).
A descrição de Ofélia é feita de forma sintética, conferindo-lhe vida singular:
“Era uma menina belíssima, com longos cachos duros, Ofélia, com olheiras iguais às da mãe, as mesmas gengivas um pouco roxas, a mesma boca fina de quem se cortou. [...] Tocava a campainha, eu abria a portinhola, não via nada, ouvia uma voz decidida:
- Sou eu, Ofélia Maria dos Santos Aguiar” (LISPECTOR,
1999, p. 100), o que lhe confere um tom de autonomia, altivez, segurança de si.

A relação entre Ofélia e a narradora não era permeada pela tranquilidade, também não era marcada por uma hierarquia que faça da adulta, de algum modo superior à menina.
Ofélia, ao contrário, é quem se mantém impositiva, arrogante, ao passo que a dona de casa parece sempre hesitante, duvidosa, insegura. Ofélia não é apresentada como uma criança frágil, indefesa, nem a mulher como pessoa segura de si, firme ou mesmo decidida. Estas vivenciam um conflito no qual se entrevê uma espécie de inversão de papéis, isto é, a criança com características de adulto e a adulta, ao contrário, é frágil, por essa razão este embate culmina num nascimento ou autoconhecimento para ambas, porque conseguem através da experiência da contemplação encontrarem-se a si mesmas.
O fato de que a narradora não via nada, sugere um descompasso entre o tamanho da garota e seu jeito impositivo.
Os “cachos duros” também constituem uma imagem paradoxal de rigidez e flexibilidade. O descompasso é acentuado pela forma como Ofélia se relaciona com a mulher. Assim, a menina é controladora e sistemática.
A narradora reconhece ser “atraente demais para aquela criança” porque tinha defeitos bastantes para seus conselhos (LISPECTOR, 1999, p. 103).
Ela menciona oferecer um “rosto sem cobertura” para a menina. A imagem associa-se à empada de legume sem tampa, antes mencionada por Ofélia (LISPECTOR, 1999, p. 101).
Desse modo, parece que nada desestabiliza a percepção de mundo de Ofélia.
A argúcia de um olhar penetrante, persistente permitiu o despertar para a outra face de si ofuscada pela face sombria que dominava a menina Ofélia. Através do olhar a personagem percebe a complexidade do amor ainda infante:
“Por essa ocasião, sendo perto da páscoa, a feira estava cheia de pintos, e eu trouxe um para os meninos. [...] Mais tarde Ofélia aparecia para a visita. [...] Foi quando me pareceu que de repente tudo parara. Sentindo a falta do suplício, olhei-a enevoada. Ofélia Maria estava de cabeça a prumo, com os cachos inteiramente imobilizados.
— Que é isso, disse.
— Isso o quê?
— Isso! Disse inflexível.
— Isso?
Ficaríamos indefinidamente numa roda de "isso?" e "isso!", não fosse a força excepcional daquela criança, que, sem uma palavra, apenas com a extrema autoridade do olhar, me obrigasse a ouvir o que ela própria ouvia.
No silêncio da atenção a que ela me forçara, ouvi finalmente o fraco piar do pinto na cozinha.
— É o pinto.
— Pinto? Disse desconfiadíssima.
— Comprei um pinto, respondi resignada” (LISPECTOR, 1999, p. 103-104).
Desse trecho, inicialmente, é importante observar a marcação temporal feita pelo narrador: “sendo perto da páscoa, a feira estava cheia de pintos, e eu trouxe um para os meninos” (LISPECTOR, 1999, p. 103). A páscoa é entendida no contexto bíblico como rito de passagem da morte para a vida, que apesar de marcado pelo sofrimento culmina em salvação, libertação.
Trata-se de uma data carregada de simbologias e celebrada em muitos países, há muito tempo.
No mercado de Beirute, capital libanesa, por exemplo, a venda de pintinhos coloridos constituía uma prática comum, pois, as pessoas mantinham a tradição de oferecê-los como presente na preparação para a páscoa.
Desse modo, a representação alegórica do pinto presente desde o início do conto funciona como mediadora do processo de transformação a ser vivenciado pela menina. O excerto citado nos mostra que a menina, ao ouvir “o fraco piar do pinto”, haja vista que se trata de um animal recém-nascido, principia um confronto pelo olhar que eleva a cena enunciativa a um paradigma que dispensa o diálogo verbal, ao qual a narradora denomina de silêncio da atenção, fazendo-se ouvir mesmo sem usar as palavras, em que todo o processo de interação ocorre pela mediação do olhar.
Nesse sentido, Ofélia experimenta tamanha sensação de estranhamento ao ouvir o piar do pinto que passa a concentrar o máximo de sua atenção no animal, o que se observa na paralização que envolve a cena, possivelmente usado para manifestar o interesse em saber a razão do ruído, além do pronome demonstrativo ‘isso’ que atribui caráter imagético ao discurso o que corrobora a ideia de dedicação ao objeto do seu olhar.
O ato de olhar permite que as personagens penetrem no íntimo do outro, fazendo-as entrever através do outro uma face de si dantes desconhecida. Isso se torna possível, porque a ação contemplativa em Clarice indica, por um lado, o movimento de deslocamento para fora do âmbito do sujeito - olhar a coisa - e por outro, o de imediato mergulho para dentro. Assim, ao fitar o outro, as personagens se deslocam de si para explorá-lo e imediatamente retornam ao seu interior, detendo-se ao ser contemplado a ponto de confundir-se com este.

Dessa perspectiva, as personagens do conto em estudo, ao travarem um embate pelo olhar, se identificam de tal modo que um toca o outro indistintamente, não havendo, pois, a necessidade do diálogo verbal para se compreenderem.
A atividade visual que a partir de então se processa, possibilita o desvelamento da face sombria da menina dantes encoberta pela sua condição de indivíduo infante, deixando-a desnuda em relação à narradora, que pode entrever em seu semblante uma gama de sentimentos como a inveja, a maldade, a cobiça, o desejo de posse, dentre outros.
“Um pinto faiscara um segundo em seus olhos e neles submergira para nunca ter existido. E a sombra se fizera. Uma sombra profunda cobrindo a terra. Do instante em que involuntariamente sua boca estremecendo quase pensara "eu também quero", desse instante a escuridão se adensara no fundo dos olhos num desejo retrátil que, se tocassem, mais se fecharia como folha de dormideira. E que recuava diante do impossível, o impossível que se aproximara e, em tentação, fora quase dela: o escuro dos olhos vacilou como um ouro. [...] Depois que o tremor da cobiça passou, o escuro dos olhos sofreu todo: não era somente a um rosto sem cobertura que eu a expunha, agora eu a expusera ao melhor do mundo: a um pinto” (LISPECTOR, 1999, p.104-105).
Ou seja, o pinto não apenas desestrutura Ofélia, ele vai além, ao desencadear um processo de morte e renascimento na menina. Nasce uma nova Ofélia que lida com a falta.
O ato contemplativo agora cresce em complexidade, desdobrando-se a partir do novo que descortina quando da visão do pinto, elemento desencadeador da transformação pela qual Ofélia precisou passar para encontrar-se, isto é, autoconhecer-se. A partir do momento em que o pinto reluz diante dos olhos de Ofélia, um sentimento obscuro lhe invade, manifesto tanto na escuridão que recobre o horizonte vislumbrado pela menina, anunciada pela expressão “E a sombra se fizera” como na desfiguração que envolve seu corpo, pois sua boca estremece e os seus olhos, notadamente a sua parte escura, responsável por refletir a luz, vacilam, padecem.
Nesse sentido, “a sombra” representa aquilo que o indivíduo rejeita em si mesmo, aquilo que tenta esquecer ou insiste em mascarar, reprimir de alguma forma, como uma “faceta desagradável”.
Nesses termos, a ideia de penumbra, escuridão, reiterada ao longo do excerto citado através das expressões: “o escuro dos olhos vacilou como ouro” e “o escuro dos olhos sofreu todo” configuram a ideia de que o contato visual com o pinto fez emergir a face indesejada, recalcada de Ofélia. Devido a educação que recebeu, a menina se esforçava em manter uma aparência de sujeito polido, delicado; por essa razão, não consegue evitar o desconforto, a vergonha resultante do sentimento de inveja, do desejo incontrolável que ela sente de ser a dona daquele pinto, de maneira que a cena que se segue à sua experiência de visibilidade enfatiza a agonia que a atravessa.
Não foi sem sofrimento que se deu o processo de autodescoberta da protagonista que a expusera à epifania nesse momento. Trata-se de um processo de metamorfose, que se inicia com uma alusão à morte, não uma morte suave, mas angustiante, martirizante como comprova o fragmento citado a seguir:
“Alguma coisa acontecia que eu não conseguia entender a olho nu. E de novo o desejo voltou. Dessa vez os olhos se angustiaram como se nada pudessem fazer com o resto do corpo que se desprendia independente. E mais se alargavam, espantados com o esforço físico da decomposição que dentro dela se fazia. A boca delicada ficou um pouco infantil, de um roxo pisado. Olhou para o teto — as olheiras davam-lhe um ar de martírio supremo. Sem me mexer, eu a olhava. Eu sabia da grande incidência de mortalidade infantil” (LISPECTOR, 1999, p.105).
O fato de não ser decifrável sem o auxílio de lentes ou qualquer aparelho produzido cientificamente diz respeito a um modo de olhar com caráter artificial, entretanto, a visão produzida em laboratório parece ser insuficiente para explicar a cena que se passa mediante a narradora, conforme a expressão ‘olhou para o teto’ denuncia.
O fato de direcionar a vista para o alto assume uma dimensão filosófica, pois como ensina Platão, constitui indício do desejo de busca pela compreensão do mistério, pelo conhecimento superior, o que sofistica esse olhar fazendo-o evoluir da perspectiva física para a metafísica. É notável, ainda, o fato de que a morte se instaura em todo o corpo, exceto nos olhos da personagem, que são personificados, isto é, adquirem a peculiaridade humana de testemunhar a decomposição, a transfiguração pela qual passa a garota. É válido ressaltar que a morte figurada na cena não se caracteriza como morte biológica, que tem seu fim na deterioração da matéria; pelo contrário, trata-se de uma morte simbólica e todo o processo culmina em renovação, revelação, acepção justificável na analogia feita à saída do caracol de sua concha, que representa a visão de um novo horizonte, a possibilidade de alçar novos voos, de transcender, o que alude mais uma vez à ideia de rito de passagem construída na referência à páscoa e concretizada na presença do pinto, que simboliza vida nova.
“Diante de meus olhos fascinados, ali diante de mim, como um ectoplasma, ela estava se transformando em criança. Não sem dor. [...] A lenta cólica de um caracol. (Me ajuda, disse seu corpo na bipartição penosa. Estou ajudando, respondeu minha imobilidade.) [...] Ela estava engrossando toda, a deformar-se com lentidão. Por momentos os olhos tornavam-se puros cílios, numa avidez de ovo. E a boca de uma fome trêmula” (LISPECTOR, 1999, p.105-106).
O rito de passagem vivenciado por Ofélia, a exemplo do retratado pela páscoa cristã, dá-se mediante amplo e compassado sofrimento físico, pela solidão e pela decisão de seguir em frente. Entretanto, se revela num evento relevante para a formação humana da protagonista, que mantinha adormecida dentro de si uma série de sentimentos que lhe impediam de viver a sua infância.
Ainda, que se trata de um processo de descoberta individual, pois apesar de tê-la permitido adentrar a um ritual de iniciação, de ter lhe apresentado à infância nunca dantes vivenciada, a datilografa se reserva a conduzi-la, a incentivá-la através da atenção do seu olhar, mesmo mediante toda a comoção que a toma, não interferindo de forma direta na concretização do processo.
A vizinha adulta de Ofélia sabia que não podia lhe estender a mão, no entanto, através da troca de olhares solidarizou-se, integrou-se a ela na luta para reintegrá-la à infância. Bem sabia a datilógrafa que esse seria um passo que Ofélia deveria dar sozinha, que ninguém poderia dar por ela, para que como resultado obtivesse o sucesso desejado. Também ela em criança precisara trilhar aquele caminho pedregoso e regozija-se na satisfação de tê-la conduzido, pois sabe que “também se morre em criança sem ninguém perceber” (LISPECTOR, 1999, p.106). Porém, Ofélia tivera a oportunidade de encontrar-se, de se tornar criança.
“Já há alguns minutos eu me achava diante de uma criança. Fizera-se a metamorfose” (LISPECTOR, 1999, p.106), confirma satisfeita a narradora.
Além da metáfora do caracol, também a água aparece no conto como elemento de autodescoberta e de purificação, capaz de revelar à personagem Ofélia a sua face humana, o seu nascimento para a nova vida, o seu batismo.
“Até então eu nunca vira a coragem. A coragem de ser o outro que se é, a de nascer do próprio parto, e de largar no chão o corpo antigo. E sem lhe terem respondido se valia a pena. “Eu”, tentava dizer seu corpo molhado pelas águas. Suas núpcias consigo mesma” (LISPECTOR, 1999, p.106).
Ao ouvir o piar do pinto a menina desperta para algo que desconhecia, mas que se encontrava dentro dela.
O ar de altivez e segurança, comum a Ofélia, cessara abruptamente fragilizando-a, imobilizando-a, tornando-a vulnerável. O amor intenso, desmedido que descobrira ao contemplar o pinto, representa o princípio uma nova vida, isto é, liberta a criança que havia sido transformada em “miniatura de adulto” pela educação rígida que recebera no seio familiar.
A narradora não deixa de satirizar o episódio, ao se apropriar parodicamente da linguagem engessada de
Ofélia:
“[...] parecia deixá-lo autônomo só para sentir saudade; mas ele se encolhia, pressurosa ela o protegia, com pena de ele estar sob seu domínio, “coitado dele, ele é meu”; [...] – era o amor, sim, o tortuoso amor. [...] Ele é muito pequeno, portanto precisa é de muito trato, a gente não pode fazer carinho porque tem os perigos mesmo“ (LISPECTOR, 1999, p. 108).
Entretanto, Ofélia, habituada que fora a sobreviver, não conseguiu adaptar-se a essa nova experiência preferindo ceder ao amor criminoso, tortuoso que a fez matar o pinto.
“No chão estava o pinto morto. Ofélia!
Chamei num impulso pela menina fugida. A uma distância infinita eu via o chão.
Ofélia, tentei eu inutilmente atingir à distância o coração da menina calada.
Oh, não se assuste muito! Às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro!
A gente não ama bem, ouça, repeti como se pudesse alcançá-la antes que, desistindo de servir ao verdadeiro, ela fosse altivamente servir ao nada“ (LISPECTOR, 1999, p.110).
A menina foge com “uma cara extremante quieta” (LISPECTOR, 1999, p. 110).
O fragmento citado ratifica que o ato extremo de matar a frágil avezinha é consequente da falta de habilidade de amar, de serem bons demonstrada pelas personagens ao longo da narrativa. A narradora então incube-se de tentar evitar que a menina se perca, mais uma vez, pelo caminho da vida. Entretanto, ela não voltou à sua casa, pelo contrário, retornou para o deserto onde tornou-se uma princesa hindu.

O conto encerra-se com a narradora em sua cozinha batendo um bolo e sob a mesa “estremece o pinto de hoje” (LISPECTOR, 1999, p. 110), local de onde partiram suas rememorações, aludindo ao que pode ser indício de um enredo cíclico, ou seja, mostrando que se trata de uma história que se repete periodicamente.
Assim, na passagem final, a mulher desenvolve uma reflexão sobre como o pinto retorna. O pinto que Ofélia havia matado era o da páscoa, ironicamente um período simbólico de martírio e de renascimento. O pinto do momento da enunciação é o do Natal.
Nesse sentido, os “autos do processo” que a narradora conduz são uma tentativa de defesa não só de Ofélia, mas também dela própria. Mesmo porque a narradora-protagonista afirma que o pinto retorna, ao passo que Ofélia foi perdida: “Ofélia é que não voltou: cresceu. Foi ser a princesa hindu por quem no deserto sua tribo esperava” (LISPECTOR, 1999, p. 110).
A referência imprevista ao hinduísmo pode conotar tanto a caracterização trigueira de Ofélia quanto as ideias de reencarnação e carma. Ou seja, no conto, Ofélia morre e nasce outra vez. Ao mesmo tempo, no campo semântico de carma, a narração nos leva a indagar se ela teria livre arbítrio em relação ao crime que cometeu. É possível ser bom? Pois a narradora-protagonista sugere, ao contrário, que a bondade seja uma aprendizagem.
A referência trágica do nome de Ofélia, por sua vez, implica a desmesura do sobre-humano, embora o restante de seu nome possua uma referência católica: “Ofélia Maria dos Santos Aguiar”.
Esse complemento pode ser lido, por um lado, como uma forma de a menina se colocar numa posição inatingível de pureza (Maria), mas também de controle (a guiar).
Por outro lado, pode conotar que a personagem infantil precisava de proteção (dos Santos).  Ainda, se nos ativermos à chave de leitura do crime de Ofélia, o nome pode ser lido ironicamente, significando o seu contrário.

Em “A legião estrangeira”, a figuração do animal é um agente de extrema relevância que opera no descentramento da constituição das personagens humanas. O pinto atua, portanto, como elemento perturbador de qualquer lógica ou ordem fixa que as pessoas queiram em vão sustentar. A protagonista narradora define o fato do pinto como um sentimento que vai se modificando como a água que vai se transformando a cada ocasião que se lhe apresenta:
“Mas sentimentos são de um instante. Em breve como a mesma água já é outra quando o sol a deixa mais leve, e já é outra quando se enerva e tenta morder uma pedra, é outra ainda no pé que mergulha – em breve já não tínhamos no rosto apenas aura e iluminação. Em torno do pinto estávamos bons e ansiosos”.
A protagonista narradora fala da bondade e o efeito que ela provoca em cada pessoa de sua família e nela. No marido rapidez e severidade; nos meninos, um ardor, e nela, intimidação. Como a água os sentimentos iam se transformando.
“Daí a pouco olhamos enredados pela falta de habilidades de sermos bons, e o sentimento já era outro, da falta de bondade para tínhamos no rosto a responsabilidade de uma aspiração, o coração pesado de um amor que já não era mais livre. Passado o momento do pinto, os adultos já o tinham esquecido, mas os meninos não, ficara uma indignação. Não só indignação, mas também acusação de que nada fazíamos pelo pinto e pela humanidade”. Constrangidos, pai e mãe ainda não haviam dito para os filhos que as coisas são assim mesmo.
“E o pinto continuava ali sobre a mesa, piando cheio de medo. Não tinha como acalmá-lo porque ele não conhecia sentimentos”.
Nesse momento em que o pinto estava ali sobre a mesa com medo, a protagonista desejou que o pinto fosse igual os humanos e sentisse como os humanos o sentimento do amor e soubesse que ali, ele, como obra de Deus, estava sendo amado.